domingo, 27 de abril de 2008

27

   Poupo-me das sanidades. Fico só e não sei escrever; não sei dizer. Aproximo com olhos medidos e fulminantes de paixão, pergunto o teu nome, apresento-me e sorrio. Estou triste por dentro, mas faço festa aqui fora, converso embora eu não saiba dizer, mostro o meu interesse pela pessoa que está me fazendo olhar para cima e ver que existe alguém a quem eu deva, talvez, só talvez, me curvar.

   Juro amor secreto nos intervalos, em que não temos o que dizer. Juro qualquer coisa que não é em vão nos não-intervalos em que falamos e falamos quando nos entenderíamos mesmo que nós não nos falássemos. Sorrio com os olhos porque lhe encontrei. E só com os olhos, porque a boca está ocupada e cheia de dentes e a língua escorrega no céu da minha boca, formando sílabas e palavras, não sei o que digo: a única certeza que tenho nessa hora é que sou extremamente corajosa, tirei coragem de um fundo reserva pra quando eu encontrasse em carne e ossos e pudesse encostar.
E boquiaberta, e corajosa e pequena, apontei o dedo no teu ombro e encostei; constatei que eras de carne e osso, e o meu mundo pequeno se expandiu, por meio qualquer misticismo ou fórmula que faz crescer.

   Umas palavras soltas, uma frase que constatei ser complexa demais no instante, mas no outro entendi. E transpareci. Respirei fundo e respondi. O meu platonismo no auge; a minha vergonha ao não ter certeza quando falávamos sobre platonismo e eu não sabia, naquele momento, se era “platonismo” ou “platonicismo”, toda a minha timidez que me faz inventar palavras e mundos, outros mundos além do mundo em que lhe confidenciei viver. Estranhíssimo caminho no meio da multidão até encontrar alguém que se pareça com o rosto que eu achei que fosse você, até eu ter o mínimo do mínimo de certeza e perguntar... uma coisa crescente, mesmo com a multidão se dispersando e mesmo com eu indo embora aos poucos, percebendo que nossos corpos se afastariam inevitavelmente. E toda a maior solidão que senti, toda a maior do mundo, porque foi inesperado, imprevisto e intenso, em demaseio intenso. E você indo também, e eu querendo ir, e indo junto, mas depois ficando, decidindo ficar, decidindo não me perder, não me iludir, decidindo decidir que conversaríamos depois, que nos veríamos mais tarde, numa tarde de inverno, num dia de frio, numa noite de ventania; num momento qualquer. E voltei, no do teu caminho contrário, até com dor no peito, até com lágrimas nos olhos e até com vontade de voltar correndo insana e fazer o que eu queria fazer e não podia querer, talvez e só talvez...

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Ia ser assim

   A maçaneta do meu quarto é preta, meio dourada; assim, com as bordas douradas e no meio um desenho de uma espécie de flor triangular. E o formato em si é como uma florzinha de criança. Cheia de bordas. Dourada em cima e entre as ondulações é preto, escuro, envelhecido pelo toque. A porta está fechada; ela está sempre, sempre fechada, às vezes trancafiada.

   A minha mão esbranquiçada e cheia de veias verdes pulsantes iria escorregar por essa florzinha excêntrica-triangular e abrir-te para o mundo dos meus tetos e das minhas paredes. A flexibilidade toda do chão e da cama, dos livros e da estante escorregadia no piso amarronzado. A vista para os prédios, as duas casas, as outras casinhas e a serra, e as antenas e as luzes que piscam, o manequim ao lado, o cabideiro, o criado-mudo com um abajour cheio de bolas... os móveis todos escuros, pretos, uma parede toda sangrenta, caixas, garrafas, livros, fotografias, lixeira, mundo, mundo, silêncio e chão.

   Entraríamos juntas pela casa. Te puxaria pela mão, te guiando com cuidado pela sala sem “buffet”, porque ele ainda não chegou. Chegaríamos, então, e, rapidamente em um corredor, à direita o quarto do meu irmão, à primeira esquerda o meu banheiro, à segunda direita o meu quarto e à segunda esquerda o quarto dos meus pais e enfim, no final do corredor e na parede um espelho, com moldura de uma madeira não muito escura nem muito clara, com uns desenhozinhos que não sei exatamente o que são, mas me parecem ondas, pequeninas ondas.

   Eu sentaria nessa cadeira aqui, onde estou mesmo. E você, você provavelmente na beira da cama, enquanto espiaria o meu quarto de rabo-de-olho e perceberia o quão é normal, não veria os filmes, nem todos os livros, nem todas as fotografias, e nenhum segredo. Apenas o à mais, que é a televisão, a máquina de escrever, o aparelho de DVD e dois ou três livros que leio simultaneamente, alguns remédios espalhados, canetas, e uma fileira de livros, na última parte da estante.

   Certamente eu me sentiria incomodada com a não reação de sua pessoa ao estar no meu quarto. Levantaria da cama e abriria a primeira porta do guarda-roupa da direita para a esquerda, e escolheria um filme que soaria um qualquer. Ligaria a televisão, colocaria o filme e deitaria na cama.

   Fim. E eu esperaria alguma reação, e não diria nenhuma palavra, aliás, eu disse? Não, ainda não disse.

   O filme começou... e se chama “Lucía y el sexo”. Acendo um cigarro, desses mentolados, porque sei que não tem muito cheiro e sei que você odeia cigarros. Presto atenção no filme. E espero que você preste também. Ainda está aí – ou lá – sentada na beira da minha cama, pertíssimo da televisão e do filme, como quem quer enxergar primeiro o primeiro momento e depois O momento.

   Acabam-se os créditos iniciais do filme, e tudo começa. Tudo mesmo. É muito louca a estória inicial, é confusa, perturbada, ainda me perturba. – Deve perturbar a qualquer um penso isso ainda hoje. E continuamos assistindo; eu prestando mais atenção do que devia e você prestando a devida atenção merecida. Às vezes olho para você, só às vezes. E depois volto a prestar atenção no filme.

   E finalmente, e inesperadamente, e mais rápido do que de costume chegou:

109
00:17:02,890 --> 00:17:05,154
Escute, posso falar com você?

110
00:17:07,027 --> 00:17:09,894
- Agora?
- Daqui a pouco.

111
00:17:11,465 --> 00:17:13,524
Estou com um amigo.

112
00:17:19,606 --> 00:17:21,665
Sobre o que seria?

113
00:17:28,715 --> 00:17:30,148
É o seguinte...

114
00:17:30,517 --> 00:17:32,712
Aconteceu alguma coisa com você?

115
00:17:34,821 --> 00:17:37,449
- Sim.
- Me conte.

116
00:17:40,794 --> 00:17:43,888
- Agora?
- Sim.

117
00:18:02,482 --> 00:18:05,349
- Como você se chama?
- Lucía.

118
00:18:05,986 --> 00:18:09,752
- Eu sou Lorenzo.
- Já sei, eu te conheço.

119
00:18:10,891 --> 00:18:13,121
Eu li seu romance.

120
00:18:13,427 --> 00:18:16,919
Várias vezes. E... agora, não consigo ler mais nada.

121
00:18:18,332 --> 00:18:22,564
Está dentro de mim agora e... não quer sair.

122
00:18:24,004 --> 00:18:29,499
Também te conheço, toda vez que eu te vejo... te sigo.

123
00:18:30,043 --> 00:18:35,106
Gosto de te seguir e saber aonde vai, sem você perceber.

124
00:18:36,149 --> 00:18:39,880
Eu até sei qual é a sua casa.
É aqui ao lado.

125
00:18:41,054 --> 00:18:43,852
E te vejo às vezes dentro deste bar.

126
00:18:44,124 --> 00:18:47,093
- Lembra-se de mim?
- Não.

127
00:18:49,329 --> 00:18:52,958
Eu sou garçonete naquele restaurante.

128
00:18:53,634 --> 00:18:55,727
Você nunca foi lá.

129
00:18:59,006 --> 00:19:01,406
Meu chefe é muito bonito...

130
00:19:01,775 --> 00:19:04,039
e é um bom cozinheiro...

131
00:19:04,911 --> 00:19:08,642
ele me propôs que eu vá viver com ele...

132
00:19:09,316 --> 00:19:12,308
e eu gostei muito disso.
Porque...

133
00:19:12,519 --> 00:19:17,479
sinto que ele precisa de mim, e agora acho que até gosto um pouco dele.

134
00:19:17,691 --> 00:19:19,784
Então...

135
00:19:20,627 --> 00:19:22,686
eu decidi...

136
00:19:26,233 --> 00:19:28,326
O quê?

137
00:19:29,369 --> 00:19:32,304
Quero que você saiba que é você com quem eu quero morar.

138
00:19:32,773 --> 00:19:37,870
Não é porque te ache muito só, mas porque estou apaixonada por você.

139
00:19:38,345 --> 00:19:41,143
Apaixonadissíma, veja você mesmo.

140
00:19:46,553 --> 00:19:49,716
- Você é muito corajosa.
- É mesmo.

141
00:19:50,691 --> 00:19:54,252
E acabou. Eu tentei.

142
00:19:55,696 --> 00:19:57,823
Você gostou?

143
00:20:02,703 --> 00:20:05,570
Você pode ir quando quiser.

144
00:20:48,014 --> 00:20:49,914
Você quer mais alguma coisa de mim?

145
00:20:51,184 --> 00:20:52,879
Sim.

146
00:20:54,154 --> 00:20:57,612
Que, com o tempo e a convivência...

147
00:20:58,425 --> 00:21:01,485
você se apaixone por mim, é claro.

148
00:21:26,686 --> 00:21:29,280
Deixa comigo, Lucía.

149
00:21:35,162 --> 00:21:38,723
Agora vamos ficar bêbados, temos muito para festejar.

   Acabou a cena. Acabou o meu parto e a minha apresentação. Acabou tudo o que eu faria e fiz. Levanto-me, desligo o filme e a televisão, fico de pé mesmo, parada bem perto de tudo...
E então ouso fazer a única pergunta que caberia, se couber nesse momento (porque para mim é tudo tão pequeno, grande, tênue, indescritível, inacreditável, inatingível que nem sei se cabe):
    – Você fica ou quer ir embora agora?

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Não confiar nos meus instintos (para descontrair)

   Quero algo intenso, muito mais do que eu. Sento-me no chão, dentro do Box transparente. Dentro do banheiro branco. A água bate na minha cabeça, escorre pelos fios dos meus cabelos, escorre pelo meu pescoço, rosto e todo o corpo. Batem pingos como agulhas nas minhas partes pressionadas que parecem explodir por dentro. Tipo mutilação, ou algo assim.
Continuo nessa mesma posição, sentada, encostada na parede com os joelhos flexionados e o jato d’água bem onde há tensão. Quero pequenas explosões seguidas de umas outras sensações que não ouso explicar.

   “E depois uma mão nos meus ombros, um pequenino sacolejo, com um certo carinho, mas que me empurre para frente...”.

   Tudo é o que dura horas. Quero mais, e continuo no meu estado de perplexividade dentro do esbranquiçado sem vapor, rôo um pouco as cutículas, penso um pouco nos amores, no meu “platão”. As pontas dos meus dedos estão estranhas, sinto os pequenos pedaços compostos de cada pedacinho e pedacinho, estão formigando, e porque? Ainda não sai do banho, e quando, logo após eu sair não existirá alguém que coloque as mãos nos meus ombros e me dê um pequeno sacolejo carinhoso que me empurre para frente... fatalidade!

   Não espero emocionalmente o momento em que as coisas desaconteçam. Justifico. Penso nas noites caladas o que dizer depois que o dia amanhecer e o que dizer mais tarde, depois que o dia escurecer novamente; imagina se eu morasse onde o sol nunca se põe? Outra fatalidade; direto para o meu estômago calejado.
Embora eu sonhe às vezes em morar na Lapônia, viver dentro, ou bem no meio da linha do Círculo Polar, numa cabana quentinha que dê vista para um lago ou sei lá o que... e em alguns dias ter a vontade e a necessidade de me sentar frente ao mesmo e vislumbrar o instante que é eterno. Mas isso é só um sonho distante mesmo.

   Lavo, por último e tranqüilamente, em água fria, quase gélida o rosto. Saio do banho, enxugo os cabelos, o rosto, e o resto. Ando pela casa com o corpo limpo, a mente em parafusos, um som estridente soando nos meus ouvidos, não sei o que é; talvez o interfone: eu esperava visita.
Não dou importância, agora está bom assim, vou me secando, me sinto bem, o meu quarto está todo impecável e sonho em fumar um cigarro com a toalha presa nos cabelos molhados. Sonho tanta coisa e já não sei o que sonhar. Mas acendo mesmo o cigarro. Bebo coca-cola para acompanhar e não perder o costume.

   Sabe o que pensei agora, ao acender outro cigarro? Ah, deixa pra lá, era bobagem... escrevo para matar o tempo, estou toda limpa esperando para cuspir algumas palavras. Estou toda lúcida para ditar algumas regras. Gostam, vocês, de regras? É, eu também não. Mas temos que descumpri-las, isto é factual e básico de qualquer ser humano.

   Uma pequena oração que escrevi após chegar em casa bêbada:

   Que os homens venham, que os instantes perpetuem-se, que se façam as vontades urgentes, que se matem as fomes. Que dêem beijos e muitos, muitos abraços.
Os desertos nunca morrem e que sempre cresçam para eu ter para onde ir com alguém; os mirantes, as praças, as árvores, enfim... que as minhas e as vossas vontades e que as solidariedades e ternuras nunca se envelheçam ou envenenem-se. Amém.


   Achei ridículo ao escrever, mas agora até que me serve de alguma coisa. Penso em como o tempo se engole e em como eu engulo o tempo e em como eu retribuo o que me entregam com algum carinho: o carinho que eu enxergo. Porque sim, às vezes enxergo com os olhos além de tatear com a língua e as mãos. E sim, também sei reconhecer. Sei oferecer. Sei dar. Sou Humana, apesar de ser a espera da minha criação, vivo/sobrevivo e vou indo nessa verdade inconseqüente que é se despregar do mundo, olhar para cima, para a fotografia, que também se desprega do seu mundo (a parede) e bater palpas. Duas só, cada um com a sua mania, e eu, é claro, tenho as minhas.

   É que mais cedo eu insisti nesse aparelho; telefone. Fiz várias ligações, sem resposta. Mas com retorno. Uma delas desligaram na minha cara depois da “conversa”:

- Alô?
- Você está histérica hein?
- É, eu estou.
- Se eu não te atendo é porque não posso, milhões de coisas pra fazer...
- É................ sei como é.
- Tu tu tu tu tu.......... (isso é o sinal do cara desligando na minha cara)

   E a outra ligação durou 27 minutos e alguns segundos, enquanto eu exercia meus afazeres domésticos não obrigatórios. Foi uma boa e longa conversa, que continuará, porque eu espero, sempre espero, né? A vida é uma eterna espera e o telefone celular é uma grande merda. Pretendo me desfazer do meu, só não sei como... já tentei várias outras vezes, e não funcionou!

   Mudando de assunto, quero me entregar. Procuro um alguém, qualquer alguém que saiba lidar com convulsões amorosas e espasmos impulsivos. E no mais que venha pelado ou nu.

    - Dôo o meu coração.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Desvantagem

   Ela verde-lava-ilumina diante dos meus olhos, com olhos imensos desvendando os meus secretos lugares. Eu humana, pequena, medonha, quase pura e assustada; esperando o entardecer, digo, o tão tarde para ter que ir embora antes de qualquer sinal de cansaço.

   Vamos, avance o sinal! Não espero, mas tenho pressa, saio de casa meio já bêbada, meio já feliz, do tipo satisfeita. Tenho o meu plano e é como nos sonhos, tenho o meu jeito e é como o meu jeito; que como nos sonhos é real que como no real é nos sonhos, como no passado, nas histórias.

   Perdem-se no mundo as pessoas. Sempre. E reencontram-se, desencontram-se. Iluminam-se, enojam-se, perpetuam-se. Encanto. Não faço perguntas porque não quero ouvir as respostas, tenho medo das respostas das perguntas que devo fazer. Prefiro lembrar dela, verde-lava-ilumina me olhando. E olhava? De repente, tudo o que eu esperava aconteceu, e me deixou mais inquieta, mais heróica e muito, muito mais confusa. Eu soube, sei e já sabia da minha desvantagem em relação à toda a situação amedrontadora que me engolia... que eu deixava com que me engolisse.

   Eu disse que não queria mais essa coisa que chamam de platonismo, pensei no meu momento apaixonado, e inteiramente apaixonado como um só momento usado e usado, por carência, desafeto, orgulho, imaginação... e eu quis para mim o melhor; o que não era o melhor, o que não poderia tornar, virar a tona e ser o melhor. Quis mesmo só o abraço para sempre, que marcasse os inúteis minutos fatais.

   E o que acontece mesmo? Quem cuida dos doentes quando não há quem cuidar? Quando os médicos não cuidam desse tipo de doentes? O que acontece mesmo? Bato na porta, bato, bato, bato, imaginando, só imaginando estar batendo, porque não estou. Telefono, telefono, telefono, e também não estou.

   É bom lembrar-me: Não ser muito eu mais.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

08 AM

   Maquiagem borrada. A vida roubada em pequenos goles de qualquer drink. Alguns telefonemas perdidos, alguns risos frouxos, muitas conversas interessantes: o espaço entre as pessoas e eu, vou até o para-peito da cobertura e vejo a vista da cidade, 360 graus, falo ao telefone, chorando disfarçado. Choramingando. Pensei em pular nuns momentos já que eu estava no 15º andar; mas não, haviam crianças, havia sossego alheio e música. E até um bolo de nozes não muito doce, do tipo que gosto.

   Volto para a ciranda dos adultos, as conversas se alteram em temáticas distintas; eu falo sobre cinema e literatura. Digo a alguém que todos deveriam assistir “Gritos e Sussurros”, do Bergman. E depois volto ao meu estado normal de lucidez e solidariedade, ouço o que todos têm a dizer, sou uma boa ouvinte e não reclamo, não tenho forças para fazer criticas porque o vento é muito e quase me leva. E vou sentindo o cheiro de viagem que o meu cachecol ainda carrega, e vou sentindo a amargura guardada para hoje, que eu sabia, sabia que eu sentiria e não dormiria.

   É uma clara e azul manhã. Não dormi e a cama ainda está desarrumada, talvez eu volte para lá; não, com certeza. Eu volto para lá!

   Passei a festa inteira sem notar a minha maquiagem borrada e só notei que havia chorado tão disfarçado ao telefone – pedindo que me buscassem – quando fui embora e pude me olhar claramente.
Naquela tarde eu havia decidido usar, por infelicidade, um himmel que não fosse à prova d’água, porque sempre que quero remover a maquiagem pra dormir os cílios ficam lá, intactos, pestanas de festas por debaixo da máscara e grudado nas pálpebras.

   Relembrei momentos, parabenizei o aniversariante, que – suponho – fizesse questão da minha presença na festa. Quebrei um copo, com alguma classe, não me deixei abalar, catei os cacos e não me cortei como das outras vezes em que catei qualquer outro tipo de caco. Estive feliz quando não pensava em me entristecer e fugir. E me soavam interessantíssimos os projetos; cabines de sexo, roteiros, músicas, todo o tipo de idéias pra se fugir do cotidiano que a vida forçada aos outros impede, e eles, inúteis, “inúteis” expelem.

   Andei pela cidade depois, depois de estar numa mesa onde não haviam conhecidos, depois de beber um golezinho de cerveja com metade de um remédio; andei por toda à parte, perturbei o meu tornozelo dolorido, adoeci a minha mente e tentei ficar inutilmente quieta e fazendo, ainda, parte da minha aparência. Nessa noite, sobrevivi, não tive um plano, não fui completamente, mas fui um pouco de tudo o que eu queria e até mesmo agora pela manhã, executei alguns afazeres domésticos, limpei algumas coisas que as pessoas nunca notam que estão sujas além de mim, escovei os dentes, penteei o cabelo e só tomei água com pedras de gelo. Isso foi bom, não foi? Mas minha cabeça ainda dói. E a lágrima ainda quer escorrer.

sábado, 19 de abril de 2008

Um esperançoso Vazio

   A vida como o desespero das entranhas mucosas explodindo em pequenos espasmos. Todo o dia como o desespero dos telefonemas não atendidos, das mensagens descartadas, dos afazeres que a verdade dolorosa do pensamento não lhe deixa executar. Vazio.

   Os remédios que tenho de tomar, o manequim com os cachecóis que ganhei de amigos distantes, as bolsas dependuradas à espera de uma mão que as leve para a rua... as roupas amassadas no cabideiro. As bolsas... esperando o vital momento de quando uma delas será enchida e enchida de esperança, dinheiro, cigarros e alguma maquiagem;

   Vejo tudo no entardecer tristonho desse sábado, a cortina branca dum pano indiano caríssimo que agora não tem mais graça nenhuma, os móveis pretos e a minha máquina de escrever que não escreve sozinha, os livros que não se lêem apesar de eu já tê-los engolido inteiros. É o que dizem sobre maiores abandonados e a solidão que faz companhia, e a fumaça que gira, e a parede sangrenta logo atrás.

   Beijos, corpos, amontoados, lençóis que eu estive todo o dia: a espera de um choro ou qualquer sorriso. O caco do meu telefone celular, a doença da tristeza de tê-lo quebrado sem querer, o soco no estômago logo que acordei e a felicidadezinha amena de uma mensagem de bom dia...

   Rodopio dentro de mim mesma, penso estar na rua, caminhando e ouvindo música, indo para a praia, indo tomar sol e ler alguma coisa, encontrar qualquer alguém; não acredito mesmo que a vida possa ser tão frágil a ponto de só poder imaginar algum movimento, algum passo, algum acaso.

   Acontece que todas as vezes é assim, tomo refrigerante, engulo comprimidos, boto pra dentro tragos de cigarro sem gosto, relembro as coisas da noite passada e imagino como será a de hoje; talvez eu não saia, talvez eu saia. E não saberei que bolsa levar, não saberei que sapato usar e muito menos que roupa jogar no corpo. Talvez eu jante, num lugar bonito e aconchegante, e mais talvez ainda a comida estará ruim: estremerecei-me.
Poderia ir ao cinema, assistir ao filme sobre o Bob Dylan, que ainda não morreu, mas não gosto mais de ir ao cinema desacompanhada. Espero qualquer sinal enquanto o sono vem chegando porque o desespero é tanto e a saudade é demais.

   Engulo meu castigo tedioso de nunca ter o que fazer. Não vou reler escritos velhos, muito menos tentar, com o coração aberto, ler o meu livro mal escrito. Não vou na impulsividade navegar na loucura destemida que me chama, porque sou mais, porque sou eu, eu é quem digo e agora estou em ordem. Ouço uma música tranqüilizante, violinos e piano e espio de dentro para fora de mim as fotografias; Diane Arbus, Freaks, Wiktin, Saudek e até mesmo as minhas. Galhos retorcidos, controvérsias, vergonhas...
Insanidade controlada, um gole, um trago, uma luz.

   Uma música que não toca: “Padam, Padam”.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Imprevisto

Ando suavemente, tateando o medo e o desprezo com a ponta da língua. Não sei nunca o que me espera; ouço as esquisitices, as minhas próprias e vulgares esquisitices. Sinto todo esse vazio do anoitecer e a vontade imunda de companhia: embora haja solidão, hoje não quero estar só.

Tenho vergonha das figuras desenhadas e do que sou. Do que dou. Fui sincera nessa aprendizagem horrível do meio do caminho, e ainda aprendo e ainda estou na beira: espero um beijo.

Apreendo bruscamente qualquer hipótese, sou lúcida e translúcida, deixo transparecer e viver a minha vontade de querer estar mútua. Ajo nas maneiras mais sutis que se pode agir, mudo de assunto, engulo os ajuntamentos, rejunto as dissoluções.

Como cega sem auxilio caminho no tortuoso deserto dos desencontros. Sei do que sei; e é mistério e é puro silêncio verdadeiro:

Engulo o segredo dos outros amores. Faço a corte e sou os ombros. Carrego todo o meu mundo e um pouco de cada um que atravessa a rua. Os lentos, os ágeis e até mesmo os inúteis. E porque não? Agora mesmo estou sendo inútil, escrevo com um filme todo na cabeça e a sua trilha sonora; faço um strip tease do que ainda guardo comigo. O dia raiando em imensas explosões e choques e coisas que falam por si só:

- Você penetrou nas minhas entranhas e desde então não consigo mais tira-lo da minha mente.

Uma surpresa, um arrepio, uma dor de estar se deixando levar; acontece que a intensidade e a perplexividade em conjunto é algo raríssimo. Ele olha fixamente à boca da moça que está sentada em sua frente, enquanto ela diz milhares de letras, juntando sílabas e formando palavras, frases: declarações.
Acendo um cigarro no outro, porque isso é tenso e é o que quero ter. Meu tempo é regado de minutos ilusórios e apaixonados por ninguém. Estou sempre desfrutando dessa divindade de me aproximar intrinsecamente nas pessoas; passam por mim todas elas e – suponho – absorvo.

Tatuo qualquer coisa já morta, já abstrata. E ainda assim, pensando na memória quase morta – a não ser pela existência intocável – ouço o foguetório do lado de fora da rua, olho pela janela e explodem cores vermelhas. Hoje o céu é vermelho, mas porque não haveria de ser?

segunda-feira, 14 de abril de 2008

ODE DO DESESPERO

Começa enjaulado, murmurado... quase escondido:

O reencontro fatal, o soco na cara, as palavras – todas – que me abstive de dizer, engolia a seco, caminhava por fora e corria por dentro, a sensação dum novo-velho instante reabrindo os olhos, comendo as mucosas internas: saudade.

Como fome, talvez sede, um pouco de vontade, algum desejo, a coisa explodindo escondida em inúmeros fogos de artifício dentro do meu céu embriagado e todas as vezes que não quis olhar, todos os gestos que não quis fazer. Meu estômago doloroso, porque tudo ia pra lá, todo o passado, toda a lembrança que sempre se quer esquecer. E porque?

Ouvia vozes estrangeiras, olhares que se combatiam, tristezas doídas que eu quis engolir e no entanto, sorri. A Deus. E quem mais? Porque não mereço tanto, sou só partezinha minúscula e cheia de nervuras.

As coisas como um imenso carrossel, esses momentos de hiatus entre pensamentos e não-pensamentos, os segundos que foram antecedendo todas as outras despedidas, os beijos no rosto que carinhosamente distribui à mesa, quis fugir. Todas as gargalhadas que me permitiram; as dores escondidas e altas. Me perco sozinha.

A primeira despedida, os beijos, o até logo, a promessa de contato e reencontro interno. A vontade fulminante de fugir; odeio vozes. Odeio gestos, odeio coisas que se movem e o arrependimento que todos me causaram, desespero um.

Segunda, a segunda despedida, a do automóvel parado na minha porta. Eu sem querer sair, sem ter pra onde ir, os segundos que pareciam séculos e a cara que imagino ter feito ao dizer que não queria ir embora. Sempre tive fome. Desespero dois.

Desespero três. A conversa, o conforto inesperado, minha falta de tato. As palavras que eu espero estarem circulando pelo infinito, a certeza de que não voltaria e a certeza de que voltariam. A incapacidade corporal de movimento, qualquer tipo. E boquiaberta, heroicamente resistindo à conversa que se extendia e prolongava a minha vontade exclusa. A despedida três e final.


Entrei pelo hall, feliz. Estou feliz. O elevador estava no terceiro andar, o meu. Esperei enquanto algo me comia por dentro, esperei enquanto a sensação se prolongava mais e mais. O elevador chegou, tive de entrar e sorrir, rir e enfim depois chorar, porque é mistério e é fome.