sexta-feira, 16 de maio de 2008

Esquecimento oco antes do sono

   Quanto vale o impagável-impecável-virtuoso? Estou quase só, atrás de mim, atrás da cama, sobre a outra cama o que pesa é um tapume sólido e, pelo cheiro, constato, ser amargo.

   Desespero calo nessas madrugadas em que não me acordam, em que não me choro, em que me calo e o sono profundo me vem junto à dor de não ter de esperar nada, não ser nada e continuar em pétalas a esquecer.

   Nunca acordo de pólen e suores. Sou despertada por um breve momento entre a realidade e o momento da minha passagem pelo portal dos arbustos secretos dos meus desejos nos sonhos e os movimentos bruscos que fazem pela casa e nas casas dos andares de cima e de cima. Logo, e cegamente, e tateando, encontro o maço de cigarros e acendo um. Trago firme a fumaça, trago firme tudo, até a esperança, até o rancoroso-amor-desperdiçado, eu sei, nestes momentos – de tragadas firmes – que estou vivendo e que estou sendo única.

   Penso um pouco nos fios, nos teares, nos buracos dos crânios que as pessoas possuem e não sabem; penso na existência excêntrica das ligações invisíveis e depois, bem depois... me chega o sono novamente, e junto dele o niilismo, bem devagar, dando um soco bem no meu estômago. E assim, ajeito os travesseiros novamente, na posição que me é confortável para dormir.

   Sono! Sei que estou dormindo e não para sonhar; mas sonho com vozes, sorrisos, abraços, sonho sempre com o abstrato, com tudo o que sou:
Dou grandes passos no infinito, flutuando e às vezes batendo contra as coisas, diante das coisas. Olho do alto as garrafas, as flores miúdas, os galhos, todos eles, retorcidos, mortos, embriagados de sonolência virtuosa e vazio oco.
Abraço firme a minha parte desprendida da fotografia, tento colar, segurar. Prender de alguma maneira e sem querer ofereço mundos além, e um chão totalmente inexistente; uma conversa e um afago. Não quero me afastar, nem no sonho.

   Acordo novamente e estupefata e os olhos se abrem numa rapidez sem descrição e ficam enormes, arregalados. Porque é que tive a certeza do vazio, e a certeza de perder e a certeza de não ganhar? Levanto-me cuidadosamente, não gosto de desorganizar as cobertas, estou calçando meias e vou andando um pouco ou muito sonolenta até a cozinha... às vezes escorrego, quase caio, o chão está assim, escorregadio e gelado. Pego um copo de água e um comprimido calmante porque tenho a certeza de não estar boa hoje. Porque é que numa só noite tenho tantas certezas? Bebo toda a água, coloco o copo na pia e volto, pelo mesmo caminho, escorregando do mesmo jeito, sentindo mais frio, andando um pouco mais rápido.

   Chego até meu quarto, com tudo o que é meu e tudo o que há de oco. Me enfio debaixo de todas as cobertas e uma lágrima me escorre e sem saber, penso que deve ser por ter tantas e tantas certezas hoje, que não é hoje e também não é amanhã: é agora e é neutro, absoluto.

sábado, 10 de maio de 2008

Um galo no crepúsculo errado

   Tenho carências. Tenho urgências. Tenho temperanças; todas essas unilaterais, pois, e por tudo e por si só, ninguém nunca entenderá. E jamais, e porquê, por mim, pelo céu, por que tal entenderiam se não há palavras, se não há tom nem gestos que às explicitam?

   Lanço-me sempre contra um chumaço de idéias e plumas de ganso. Lembro com uma quase-lágrima da frase que eu resmungava para dormir: “Os galos cantam no crepúsculo dormente...” – de um poema da Cecília Meireles. E ainda o resmungo, mas agora quase sem som, quase sem os lábios. Fico no pensamento: que é melhor, mais puro, ou não. Mas é melhor, ninguém ouve, ninguém diz. Não há alguém lá e nem aqui.

   Fico, - talvez porque eu queira, nessas madrugadas de final de semana -, solitária no meu quarto e tudo o que vejo são garrafas, galhos retorcidos, flores de papel, e poucas cores. Tudo aqui soa minimalista e junto de tudo eu, com meu copo de chá-mate com leite morno e um cigarro para me acompanhar na jornada inútil de ter que sobreviver no deleito que vem antes do pranto.

   Daqui a pouco o galo da casa vizinha cantará, acho o fuso-horário dele muito estranho. Não são nem uma hora da manhã. Mas ele canta mais ou menos nesse horário... e então o crepúsculo terá um galo que cantará de verdade. Digo, “crepúsculo”, naquele sentido figuradíssimo de decadência. O galo cantará, a minha dormência enfim chegará e quase tudo está no lugar.
A cama, o chão, os móveis, os adornos, a rua, os postes, o gatinho do lado da garrafa, o aparelho telefônico que nunca toca, a televisão no mudo. E tudo mais; menos eu, na cama, porque estou aqui, frente à janela, pensando no galo, no crepúsculo, na temperança e nas minhas coisas unilaterais.

sábado, 3 de maio de 2008

Feche os olhos e confie em mim

   Não mais o frio, mas chove. Penso, repenso, tenho memória, tenho telefonemas e falas. Sinto a situação pendente; pego o maço de cigarros, puxo e acendo um. Trago com o máximo de força; Trago-o com o máximo de força para perto de mim. E sou vil. Sempre que posso sou vil; porquê com você é assim que tem de ser: vil.

   Chove forte, pedregulhos no teto todo meu, talvez. E você deve estar na rua, pedregulhos na tua cabeça, Amém. Penso nas piadas que ouço e não presto atenção e em todos os “nãos” que ouvi em 72 horas. Soa-me muito, muitos “nãos” em poucas horas. Mas o que se pode fazer? Pisam em meus castelos e nem estou na praia; faço confidências nuas enquanto estou vestida. Preciso conversar e no fundo tudo o que quero é um resgate, um fio de memória que vá se puxando e puxando e enfim: aí está, o meu novelo velho de lã cinza-esverdeada.

   Porém, apesar de tudo e apesar dos questionamentos, haverá um dia em que não me verás mais chorar em sua frente, – tão amargurada, tão humilhada, perguntando se jogas alguma coisa em minha cara – porque estaremos distantes: estarás cuspido (como me cuspis-te) ou morto (como me matas-te) ou então até distante, como propôs, com toda a ignorância e prepotência a ausência, infame.

   E quem me dará rosas? Logo eu que odeio rosas!
Quem me dará uma única rosa de latão com um gancho? E uma caixa, e um livro, e mais outro livro e a idéia de um curta-metragem e muitos, muitos cappuccinos italianos ou não? Ninguém me dará a amizade e o banco do passageiro, em que eu fico calada ouvindo, ou em que falo qualquer besteira e não sôo nada interessante.


   Haverá a morte, tão falada, tão anunciada, já que escolheste. E de todas as outras oportunidades, e de todas as outras qualidades e desqualificações e defeitos, foste ficar, e fincar logo nos meus defeitos, tão gloriosos que me sustentam, e sustentam-nos nos atos ilícitos, cometidos sem vergonha e sem medidas. E mais depois ainda, daqui a dez anos, eu o reconhecerei?
Acharei-lhe estranho como lhe achei à primeira vista? Será que eu vou engordar como algumas pessoas do seu passado engordaram? Ou será que quem engordará é você?

   Mas sou forte; suponho. Agüentarei as pontas, sempre agüentei. Alguns cospem, outros mastigam, mas eu engulo, sempre; mesmo que alguma – qualquer – lágrima escorra.

   Pouco tenho medo das tragédias. Pouco tenho medo dos desencontros e atrasos. O que não gosto mesmo é do descaso, do desnecessário, desrespeito-amargurado. E foste logo comigo, que ia com você aonde quer que fosse.


● A alguém decididamente (não por mim) especial

    – Lorota! Balela. Quero alguma coisa que marque. Mútuo, que não tenha prazo nem validade, nem empecilhos, muito menos vaidades. Não quero tempos, nem relógios. Nem tic-tacs, nem a quem chamar quando estiver, assim, como digo, mutuamente-marcada (o que é eterno). Vou até a montanha e enquanto dormes escrevo pois não tenho o que fazer, você não está aqui para eu dizer; e dizer o quê?
Tudo o que já disse antes, e voltar na mesma história de antes, seguindo a linha desde o começo, que parece interminável e o fim que parece não existir. E dizer que tem de ser assim, porquê vai ser assim e não é porquê quero, é porquê vai ser. E é estranho. Sou normal. Mas é estranho.

   Não, e não. Não mesmo. Você não quero que morra. Nem quero que me mate. Nem quero te cuspir e muito menos que me cuspa. Não quero a ausência batendo em nossas “portas” excêntricas com chaves e fechaduras invertidas, transmutadas.

   Porque senão, e senão...

   A quem comprarei coisas bonitas, em par? A quem direi o que vi, e fotografei, o que filmei para mostrar quando encontrar, e os filmes, e os livros, e os versos e as fotografias... e o amontoado de idéias que preciso, sempre precisei compartilhar. A quem vou pedir que me aceite com defeitos e qualidades, e a quem vou querer o impossível, o incrível das duas maneiras possíveis que penso, o mágico, o irrealizável que realizarei... a quem?

   De quem vou querer ficar perto e só perto, sem falar (e perto de quase mais ninguém)... e dizer que é a pessoa mais linda que já “vi” na vida? Não há quem. Não há alguém. Ninguém.