sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Cena erótica – sobre divãs

       Sento. Levanto: morro de véspera. Agudo! Inusitado permeia as idas e vindas do dedilhar nas teclas disso ou daquilo que conduzo com pouca destreza. Mordisco o lábio inferior. Um suspiro! Puxo um cigarro do maço nem cheio nem vazio, acendo rápido e trêmula. Trago forte, direto aos pulmões: a todo vapor, a todo vapor, vapor, vapor?!... já não sei.

       É vasto, contudo, continuo minha cantiga, toda a minha esperança que conduzo num pacto comigo mesma. Levanto, sento, estremeço inteira, já sou um gatuno de olhos cintilantes observando as erupções de um intelecto-vazio e de uma mente quase que completamente sã. Confesso tudo, pois estou na hora do desenrolar, desenrolar-me de cobertores, fios recobertos por camadas e camadas de espécie de algo superior a ouro e santidade além de qualquer santo: minha antítese da nudez e o divã.

       Conto sete passos, falo sobre todas as coisas, e ao certo não sei sobre o que digo. Era manhã, e eu sentava, levantava, fumava, mordia o lábio, roia a unha do dedo mindinho, escrevia, mordia a caneta que usava para rabiscar os erros que eu mesma produzia enquanto redigia pensamentos desconexos de mim ao laptop anos 20. E agora é à tarde e estou aqui; com a folha amassada entre as mãos, deitada contidamente, olhando a sala limpa, arejada, repleta de muitos livros e poucas estantes: livros que servem de bancos, bancos que servem de livros e vice-versa. E uma parede em especial me prende a atenção, não se usam mais papel de parede, mas aqui tem e é beige, com ornamentos sutis em verde claro, um verde que se mistura com o beige, sem deixar de ser verde claro, embora eu não saiba identificar bem, ou explicar exatamente o tom de verde, talvez um musgo bem, bem clarinho e suave. Nessa sala tudo é suave...

       Livros muito antigos. E os passos Dele são lentos e sua voz é mansa, tão mansa que quase me conduz a um sono leve. O chão é branquíssimo, e tem uma enorme janela, que se faz passar por parede, com uma cortina de voil indiano branco, que eu poderia descrever como insignificante se não fosse tão bonita! Fecho os olhos, sempre fecho os olhos porque, bem, tenho de me concentrar nas minhas palavras, tenho de não olhar para os olhos azuis por detrás das lentes dos óculos Dele e tenho de também não prestar atenção na sua boca silabando as palavras que eu quero ou não ouvir. Ele me indaga sobre porque não correspondo pessoas que não compartilham os mesmos sentimentos que os meus; isto de modo geral, sentimentos como um todo. E eu não consigo explicar, esquivo-me de tudo, sempre, do mundo, esquivo-me de grande parte dos acontecimentos, mas continuo vivendo, e desta vez, comigo ao divã, vermelho-sangue, e ele sentado à poltrona, vermelho-sangue também. Olhamo-nos friamente, neste instante que esquivo-me da indagação que não foi necessariamente uma pergunta.

       Ele é um sujeito pacato, sensato e inteligente. Acha que sou uma artista, uma escritora; duas vezes por semana se põe a ler calmamente e criticamente tudo o que produzo, embora, eu, timidamente não goste de lhe mostrar minhas produções. Ando adversa, ando sem andar, compenetrada no meu eu e analisando os demais; grande parte disto devo a ele, nesta convivência sem defasagens e com uma margem de erros mínima. Levanto-me, olho os livros calmamente até chegar à janela e lá fora parece tudo tão calmo e é por que não ouço ruídos, barulhos, buzinas. Volto ao divã. E no exato momento em que me sento, lembro-me de uma conversa intensa, porém breve:

              Ella: Quando você vier, aonde prefere?

              Sabina: Prefere o quê?

              Ella: Fazer sexo comigo!

              Sabina: Tenho tantas opções assim? Sua cama é de casal?

              Ella: Gosto de fazer sexo na banheira... minha cama é de solteiro.

              Sabina: Nunca transei na banheira, mas parece interessante!

              Ella: Já sei pra onde te levo. Você vai comigo ao Divã; vai ser sempre no Divã!!!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Segredos para Lottie

       Se o tempo parasse, para então eu juntar todas essas coisas perdidas nos pântanos, a vida seria melhor, Lottie. Tronco luxurioso. E os meus olhos se enchem de lágrimas, e as minhas lágrimas se enchem de alguma coisa secreta, que vem do delta no seu paradoxo venusiano e inatingível; tornei-me incansável nas investidas de olhares avessos e retóricos. Pois sou eu quem se cala sempre e quem se despede sem um aceno, vou indo de leve, de mansinho, deslizando no infinito, como se a mim fosse tudo confidenciado: o prelúdio do fim.

       Tiraram-me as mãos dos antebraços, tiraram-me os braços dos ombros e as pernas para que não eu possa chegar até a ti. Tenho olhos culminantes e até o mais distante e grave deslize consigo gravar na retina, fotografar por detrás dos cofres encharcados de sal e água quente. Vim do mar porque não tive outra escolha, e por isso meus olhos são cristalinos, moles e líquidos.

       Coro as bochechas, a face nua inteira. Vejo-lhe sem saber exatamente o que és. Sigo a estradinha que me leva até o caminho do encantamento, até o portão aberto e depois a casa toda sem móveis e as janelas abertas, redemoinho de poeira e cabelos louros subindo, subindo, dançando no meio da sala de jantar. E aqui sou o som de tudo em volta, sou os passos, e sou a mobília e sou os convidados e sou a própria comida. Faço-lhe o favor de me calar.

       Ando percebendo – sem andar – aqui mesmo, bem como o mundo é... petit Lottie, a vida traga-me num desajeito tão grande, num desgosto imenso e eu, enquanto só eu; quero remendar tudo, sair costurando as nuvens, os grandes buracos acinzentados que percebo quando olho para o céu nesses dias de setembro. Embora toda a chuva e ventania e toda a eletricidade pairando no ar me cause um êxtase e felicidade enorme, sinto vontade de sair remendando tudo, deixando as coisas como deveriam ser, ou todas brancas, como se o céu fosse todo de algodão ou todo azul, profundo e tácito.

       Mas não, eu não seria capaz, sei que há a volatilidade. E também sei que as coisas giram, e por tudo isto, desisto. Mas não morro. Continuo, e não disse quase nada, fico atrás do pensamento. Falo no destrambelho a mim mesma, porque contudo há o que sobra, palavras perdidas nas entranhas, grudadas na mucosa, na relva, nas plantas selváticas perdidas por entre os dedos de Lottie, que me espera, adormecida na cama enquanto penso que ela me ouve.

       Falo e falo sobre o dia, sobre a brisa da manhã, sobre a volta, o porvir e o amanhã. Mas, não, Lottie é só uma menina e já está dormindo há pelo menos uma hora num sono profundo, mas leve, leve... a mãozinha encostada no rosto, mechas louras perdidas por todo o travesseiro e o corpo todo desprendido do resto, como se flutuasse no ar, mesmo em cima da cama, atrás de mim. E eu, uma egoísta, tenho vontade de acordá-la, sacudi-la e contar tudo sobre o mundo, sobre todo mundo e lhe dizer que, apesar de, há esperança e “apesar de, se deve amar”.