quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Sobre as sensações

       Depois do mundo, é o secreto que respira por nós e somos nós que, também, caminhamos com um olho fechado e o outro de qualquer jeito. E depois, um pouco depois ou não: caindo, lamentando, amando, gritando porque chorar não adianta mais, ir indo e rindo percebemos que a vida segue num rumo sem prumo. Numa coisa sem linearidade e na ousadia sublime do instante, que pulsa, retroage, bate no coração da própria vida e do nosso próprio pulso. E assim, vai: amargo, tranqüilo, amando odiar-se e odiando-se amando, invocando o mundo, provocando tempestades, impedindo ou fazendo tufões e maremotos. E quando pára, adormece no encanto e no quarto em silêncio seja por, talvez, ter sido tomado por aquela diferença básica entre os seres: não sabe e não sabe que não sabe, sabe e sabe que sabe. Este e em resumo de toda a grandeza é motivo de silêncio e ausência, sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância[1].

       Acorde! Com a sensação de ser um soberano, um rei, um príncipe, um semideus e, a verdade é que... não dormiu tanto assim e tudo o que fora sonho já se perdeu, esfumaçou na medida exata em que, intuitivamente, seus olhos foram abertos. Porém, à parte, tens agora a consciência de tudo aquilo, de horas atrás, de ontem. E, por isso, captou a essência da manipulação, consegue usar máscaras. Consegue escrever não sobre seu signo lunar, mas sobre seu signo ascendente, sobre o que realmente sente. E se, por acaso, começar a pintar; suas pessoas, paisagens, corpos, seriam inteiramente disformes, pois depois de toda a descoberta da ignorância defronte você e a humanidade, tudo o que enxerga é assim: disforme. Mas não, olhando-o na rua, andando para pegar o ônibus, você é completamente normal, não é um novo personagem de Freaks, muito menos uma das pinturas do Schiele, mas é que a arte é uma mentira que revela a verdade[2] e é por isto que escreveria sendo transparente, mas, falaria, ainda assim gaguejando porque é tímido demais e usaria ainda as suas poucas palavras de sempre.

       E mesmo assim, com todas as descobertas, redescobertas, caminhos a seguir, passos não dados e quilômetros rodados, centenas e centenas de máscaras trocadas. Depois das inúmeras sensações que sentiu de ser tudo, desde semideus a reles. E além, todas as vezes que fora além do ponto, sempre além do ponto e as sensações que viraram personagens e as personagens que viraram exatamente você. Um dia um Maquiavel contra si mesmo. Mas sempre, em todas as investidas de ser não sendo exatamente, sempre fora seu próprio amante. Thecov já dizia que o homem é o que ele acredita ser, e foi nisso que acreditou no tempo magnífico de todas as personagens que vivera e, que mais tarde foram literalmente mortas, assassinadas, arruinadas, suicidas, fatalistas. Mas que ainda assim, não deixando de ter carne, ossos e vasto estrago viveram com um coração na mão, esquivando-se do que vier e ouvindo o sopro da vida. Por isso talvez digam que a arte imita a vida, ou talvez nossos “bichos” depois de criados tenham autonomia própria, uma espécie de vida, e fique em baixo quem tiver coragem de domar e os quiser novamente; pois há neles a vontade de respirar, de expansão e contração, de um certo amor liberto do mundo e das verdades tão ditas: nunca limitam-se.


[1] Citação de Sócrates.

[2] Citação de Picasso.

sábado, 8 de novembro de 2008

Nudez

       Sou úmida. Sempre de olhos líquidos e, agora, bem em cima do asfalto quente, ensopado, borbulhante e imundo de mim já não lembro o gosto que tive ontem. Engulo espaçadamente gotas de chuva ácida e fria, gotas quentes e salgadas e, entre o milímetro disso e aquilo existe a vastidão: paira tênue um secreto bem-estar subindo pelas pontas dos meus dedos, enraizando no meu cérebro... tudo, tudo o que arranhava antes, e que agora só é meu futuro imediato. Nesses tempos a vida soa excêntrica e imediatista, sempre soube de tudo isto e falando agora, sei bem que lhe parece muito pouco.

       Quero mais que o mundo todo respirar, expandir, fluir junto à enxurrada ali do lado, ser-água e quase me torno a própria água. Sem movimentar muito e não estragar o tempo paralisado no próprio tempo, os olhos que olham nos olhos e a vida que bate na própria vida. Um coração enjaulado na mão, − tudo suave, tudo cinzento, os passos em volta, a lentidão aberta das estacas d’água, o hermetismo dos carros... e o mundo agora nu, preso na minha retina que já fotografou números enquadrados, paredes verdes, vozes que penetravam, perfumes que nos encostavam e palavras que se acrescentavam...

       Agora é um oco, vasto-nada correndo em silêncio porque não se pode gritar. E não se pode mais agir, fecha os olhos, entrega-se como mais um corpo, a mais, e de mais a mais, sempre fora isso, no meio da multidão e sendo só. Pedaços de mim vão subindo, outros descendo, se misturando ao asfalto, à água suja, todo meu amor é minha lama e ainda tento me levantar, mover os braços e gritar... engulo amargo.

       − É breve, lástima, verme! Tudo passa, dá-me tua mão, entras no perigoso e labiríntico caos de mim: me puxa pra fora, me estilhaça contra a parede de vidro e me remonta. Ando meio zonza, atravesso meio mundo. Dou um trago, mais um, mais um, mais um e me acabo porque eu precisava reviver. E volto, refazendo o caminho anterior, recolhendo tudo o que era meu e dessa vez, quem anda nua sou eu.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Duas: quase três

       Pálpebras enormes e lágrimas ardentes velam um sono que eu não veria nem de olhos arregalados. Além da minha planície gelada, com os pés descalços vou repetindo algumas dúzias de palavras bobas e é só por que depois do meu fim, ainda lhe faço dormir.

       Metade de mim é você e a tua metade que não é sua mais me é. E nos tempos mais dóceis, nos segredos mais inexatos dos ventos, agarro essa verdade aveludada com a ponta dos dedos e respiro o que for de cheiro... e sei bem que me perco nas idas e vindas do gosto que completa o meu, na realidade que é minha fuga. De toda nossa percepção em comunhão. Nós.

       Línguas desdobradas, palavras impermeáveis e coisas sempre desarmadas. Vou me desmanchando aqui e depois reabrindo de novo; tudo o que eu já deveria ter lhe dito. E tosquiando meu pensamento e os dedos: fecho os olhos e espanto! Enxergo displicentemente o mundo de Psiquê e o amor. Reconheço o sonho e todas as palavras que completam e completam e giram em torno das minhas.

       Venta frio, sombrio e forte. Mas não, não chove mais. Gosto de toda essa força e talvez essa insuficiência toda tenha se dado porque é primavera e minhas páginas estão querendo saltar pelo quarto: tudo o que faltar, o vento levou. Hoje a insuficiência de palavras quem causa é o vento, não que o fluxo não tenha sido grande o bastante, - é que vou com o fluxo, como se, contudo, eu fosse remetente e destinatário, mensagem e código... e o vento, toda a força é você.