quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Bliss

   Ela toca os lábios docilmente. Cerra os dentes, olha o homem que está de pé a sua frente; tira as mechas de cabelo da boca e coloca atrás da orelha. Cabelos ruivos, brilhosos e lisos. O homem sorri e lhe segura à mão, assegurando-lhe estar tudo certo. Estou olhando e observando meticulosamente tudo de camarote, no banco bem em frente enquanto tudo chacoalha. Luzes, sombras, mais luzes e os rostos dos dois às vezes se aproximam de mais, sinto o bliss, quase que em mim e seguro-me por dentro porque é como se a minha barriga sentisse frio, e não a deles. Ele fala sem parar enquanto a engole com os olhos puro e ternamente, como numa frieza automática, ela desvia os olhos e sorri mecanicamente.

   Sempre não posso ouvir sobre o que conversam, ouço música e se não ouvisse uma bobice me dominaria por completo, ou achá-los-ia tolos e apaixonados demais com assuntos demasiadamente ridículos ou a ironia de observá-los tão cruelmente me atormentaria e eu não conseguiria mais; a tola seria eu, a errante, que além de olhar, ainda ouve demais. Prefiro escolher um dos sentidos e agarrar-me então a ele e não soltar, nunca mais:

   As palavras se envolvem, enovelam-se, umas nas outras, da boca de um da boca do outro. De um ponto para o outro. E atropelam-se, percebo que se desajeitam quando falam. Às vezes falam na mesma hora, e logo após um silêncio horroroso de alguns segundos toma conta de tudo. E o outro resolve romper essa barreira novamente e de novo e de novo; espio com olhar de anciã, reprovando ou aprovando as aproximações.

   Tudo parece passear tacitamente entre eles, mesmo entre enxurrada de palavras e gestos quase secretos e brilhantes olhares; o homem parece perceber a suavidade que paira no ar enquanto a mulher sorri, – ela está sempre com um singelo sorriso – e se aproxima de infantil e nua: tasca-lhe um beijo na boca, desses rápidos. Ela, ela retribui e o olha com franqueza... bliss, felicidade, arrepio. E eu também sorrio, retribuo com sabe-se lá qual olhar.

   De movimentos esculpidos nos segundos, interstícios de tempos remotos e maremotos de torpores e odores de frenesi que saem dos poros sem que percebamos faz-se a paixão desligada do tato, fato, história, consumo e horror. Apenas o aprisionamento na retina: pequenas lembranças de imagens, todas estas, coladas uma após a outra, série de movimentos, fricção de rostos, gestos, formando cores, sensações subumanas, - e dá-se então, tudo o que não se sabe, têm-se o que não pode, o incapaz, inconcebível, a construção do inamovível:

   Estatelado no banco, eis-me a olhar. Eu sou, tu és. E não preciso de mais. Respiro inteiro!

3 comentários:

Iriene Borges disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Iriene Borges disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Iriene Borges disse...

Há tempos não te visitava.
Saudades de tua bela escrita