sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Sonho

       Minuto após minuto e a vida só é sólida e eu? Inamovível. Compõem o triunfal olhar, – sou viajante e tenho muito prazer em borbulhar todo o meu desgaste na cama de ninguém, e despertar com o sol me irritando, me sacudindo e tudo porque não, eu não sei a que horas ele chegará – todos, estes bem aqui, que eu nunca esperei que viessem, que eu, justamente eu... nunca quis que partissem. Meu corpo todo está ereto e nesse segundo (e certamente nos próximos que virão, até a minha morte) não faço nenhum movimento brusco, como se eu tateasse o ar com uma suavidade divina. Meus olhos, pois bem, esses jazem num mar de todos os sais do mundo e são contraídos, porque dói... e eu acompanho o toc-toc dos sapatos, o movimento das saias e vou ao vácuo do corredor e tudo em mim dói (contração).

       Meus dentes, boca, meu rosto, tudo em mim brilha e vou até a sala sorrindo, não rindo, não sinto nenhuma felicidade pungente... no entanto, sinto que meu coração seria capaz de saltar do meu próprio peito, de tanta força. Borbulhas novamente, o champagne e todos sorriem ou riem alto, me interesso pela selvageria das pessoas. A selvageria contida enquanto as luzes estão acesas, enquanto o ar é agridoce e os meus olhos as acompanham, chamo a Didi e digo para que continuem servindo champagne, cada vez mais, e agora whisky para os rapazes, e o mais depressa possível, ela corre. Todos devem se divertir, todos, e até eu mesma, em espasmos e contrações, em dúvidas e anseios.

       E de novo, o toc-toc perturbante, que eu conheço muito bem, que me faz estremecer, que me faria parar toda a festa. Mas não, converso, viro minha bebida num só gole, dou um nó numa mecha do meu cabelo e ela se aproxima, olha para mim e percebo que chorava. E ela percebe que eu me divertia, supõe que eu me divertia. Puxa-me pelo braço, pela minha própria casa, como se todo o caminho até meu quarto de hospedes fosse secreto, como se tudo aquilo, as paredes, os móveis e as pessoas fossem componentes dum jardim que só a nós pertencesse! E na pior das hipóteses, eu receberia uma bofetada por sorrir demais, por beber e fumar demais, por ser humana demais... já me aconteceu antes. E na melhor das hipóteses, ela não diz nada, diz que está tudo resolvido, que se resolveram: claro, eu não tive culpa alguma! Fiz uma festa para comemorar isto, hospedes em casa, céus!... penso, enquanto estou encostada na parede, ao lado da porta, por que sim, ela pediu pra que eu esperasse.

       Espero, passa um amigo, tomo da mão dele o copo cheio e dou em troca o meu vazio, sento no chão, espero. E por fim a porta se abre, olho curiosa, nada mais me surpreende e isso é incrível. Não me levanto, não me movo, respiro, trago, continuo olhando, desvio o olhar. Dentro me encho de rancor, de ódio e me pergunto sobre qualquer capacidade, sobre a capacidade, penso na morte, na minha morte e em como ela seria rápida e poderia ser naquele dia mesmo, num minuto seguinte aquele, tudo porque naquela altura eu sentia toda a miséria que sou mascarada por alguns sorrisos e... continuava, contraindo meus olhos, revirando tudo o que era meu por dentro e eu doía tanto, e não poderia gritar.

       Os passos vieram, sem toc-toc, descalços, confusos bem diante dos meus olhos. Mas eu só olhava o outro corpo, estirado na cama, sem fazer um ruído, sem provocar um transtorno: está tudo bem, vai ficar tudo bem – eu pensava... e aceitava ternamente, como deveria ser. E ela sentou-se ao meu lado, pegou minha bebida e tomou tudo, pegou meu cigarro e não devolveu enquanto um silêncio opaco circulava entre nós, enquanto eu só queria entrar no quarto e deitar na cama e dizer que tudo bem, que eu iria embora da minha própria casa, que por mim o sentido de tudo aquilo era o anti-sentido e que eu a amava muito mais do que qualquer amor ou vontade ou desejo gritante e mordia os lábios e tomava coragem e a coragem crescia e eu me decidia, e eu entraria no quarto e falaria aquilo e faria isso mesmo, coragem, coragem, coragem e tentei pegar meu cigarro de volta: o último trago e coragem!

       Mas um único movimento foi capaz de desmoronar tudo o que a minha coragem poderia produzir e pela primeira vez na vida fui beijada sem que eu quisesse o beijo, sem que eu esperasse, sem que eu jogasse cartas, sem que eu soubesse que no fim iria dar certo por sabe-se lá qual motivo e pela primeira vez chorei e não soube o motivo também. E como um sopro, um vento doce e dócil no meu ouvido ela me disse que ficaria, que não se permitiria, que não agüentaria... e eu ouvi tudo, ouvi amando, como quem sempre amou e mesmo que eu quisesse fazer algo: nada poderia, estava enfeitiçada. (minutos, minutos em silêncio)

       Ela levantou, foi ao quarto e eu me afixei na cama, me asfixiei na cama, num gás em que nós morreríamos. Juntas e fui até lá, me deitei e disse tudo o que eu tinha pensado antes, tudo o que eu teria feito e uma voz generosa diz que me não tem graça mais, que existe outra pessoa, e que nosso amor é do tipo maior que o mundo (alívio). Deito-me, abraço, cansaço e o mundo vêm vindo todo de uma vez me atropelar, alguns amigos entram no quarto, se amontoam em cima da cama, me sinto somada!

       Todos apertados, falando alto, mudando e mudando de lugar, e ela chega até mim. As vozes vão se distanciando, meu ideal de amor está feito, pois as nossas mãos estão dadas, e as nossas palavras vão se completando por dentro da escuridão e as pálpebras não se fecham e os desejos são muitos, mútuos e deliciosos... mas o silêncio é avassalador, e tudo se cala, se encaixa, o sono aparece, como uma surpresa desagradável e nossos corpos vão perdendo as forças, os olhos vão se fechando e a última palavra que me lembro ter ouvido antes de adormecer foi: nuvem...

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Veludo

       A mão se lançando sutilmente no escuro entre o queixo dele e o meu. Branca, macia, macia, e a outra mão quente, encostando na minha; tecendo uma atmosfera tênue de malicia e ferocidade. Não fomos necessariamente negativos, nem as mãos seriam. Uma pálida, macia, de dedos longuíssimos e, a outra um pouco morena de sol, vezes de pianista, outras de estudante, mas sempre fugaz. Escorre feito sangue, porque há essa hora, já me tornei quente-quente, até as maçãs do rosto em movimento, como se fossem só os músculos a serem vistos. Tateio com os dedos, com a ponta dos meus dedos, com cada pedacinho das minhas unhas e reajo ao estremecer do conhecimento de cada desejo minúsculo.

       Abro os olhos, ou ele abre, abrimos. Olhamo-nos embriagados, estou com as vistas tortas, já não enxergo tão bem quanto a quatro horas atrás. Fico em mim, no lugar que eu deveria estar: girando em torno de mim mesma e ele chega. E como se eu já o conhecesse, percebo que ele se aproximará como um tufão e, os lábios se encostam, os narizes, os cabelos... e talvez tudo o que há de invisível se encoste também. Respiro. Uma de suas mãos preenche a lacuna que possivelmente meus cabelos sentem, pois o corte é novo.

       Sorrio, e por um instante abro os olhos e adoro a frivolidade das pessoas que consigo engolir no meio da escuridão. Docilmente bagunço todo o cabelo dele, beijo-lhe os olhos, mordisco sua bochecha, sua orelha e sei que respiro no pescoço de um quase desconhecido... e seguindo meus rastros ele me beija o pescoço e eu, – como a mulher mais cansada do mundo, que sempre fui – recosto a cabeça na poltrona e acendo um cigarro... penso nesses momentos que a vida é de uma beleza excêntrica e os encontros marcados de esbarrões e obscuridades.

       Levantamos, vamos ao bar, bebericamos nosso champagne e nossas línguas se encontram sem medidas. As mãos saem dos cabelos, dos pescoços, dos rostos e descem até ao tórax, até onde o coração pode bater tanto e de tanto bater, parar. E os beijos se transformam em não somente beijos são agora beijos-desejo. E alguma coisa arde mutuamente... e continuaria ardendo se não sentasse ao lado um conhecido e se do outro lado alguém não o chamasse: e tudo se acabou?

       Fecho os olhos, abro, fecho. Ouço a música, memorizo tudo, a bebida na minha boca, a fumaça ao meu redor, os desconhecidos, todas as dezenas de rostos desconhecidos e alguns conhecidos... envolvo-me sem me envolver; no ar, abafado, razoável... envolvente. De tudo, sei que vejo quase nada, encosto na parede, acendo um cigarro. Bebo cerveja. Danço, sorrio. E as pessoas parecem conformadas, convenientes a si mesmas, olho como a morte e quero levar alguém pro outro lado de tudo, saio da parede.

       E não faço questão, ele vem, e se perde, não procuro, acho aquela interessante. E o outro reaparece... faço uma teia entre as pessoas e não gasto muito tempo, entrelaço-me no meio e talvez eu me leve também. E sem o menor esforço ele diz que a música está estranha, me oferece uma bebida, pergunta o meu nome e o papo não tem fim... resolvemos sentar num canto qualquer.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Diluída

       Espasmos de meretriz na cama de U, sou eu mesma quem diz enquanto um nervosismo torrencial embola – quase – todas minhas cordas vocais. Balbuciando gozos matinais enquanto a cama ainda é quente, tudo é desfeito e corretamente torto... e sempre, para sempre na cama dos U’s desajeitados e amante (quase, tão só) e perfeito!

       Agora-já tenho a língua quente, amarga e presa no céu da boca: tudo me restringe ao lugar mais alto e confuso de mim mesma. Ahh! essa inexatidão de exatamente-desejo. E só poesia em cima de poesia, sem cheiro, sem rastros, sem qualquer tato e gosto; sem poder me dar em forma de soneto... e então sei, sei bem que por isso e tudo a mais vivo insone e o mundo das coisas me afunda no tic-tac profundo da adestração. Quieto. Quieto.

       Trago direto para dentro de mim a pequenez rápida da paralisia dos instantes. Você? E tudo o que pulsa é desvantagem, urros de desvantagem nas vezes que fecho os meus olhos e tento ser ninguém. E a língua ainda aqui, e a escuridão em mim, e é desse modo que percebo adorar o jeito envolvente das palavras no escuro, adorar os exauridos, os hálitos quentes do mundo:

       Altas, nós, solúveis... imensamente diluídas enquanto batem corações e, novamente, somos nós. E talvez, pela sensação, eu goste de andar sem tatear no escuro: me dá um medo, e o coração bate na garganta, e... procuro além de mim, respiro-te inteira no momento exato! Afogo num desespero e é – só – por que não consigo mais subir e nem posso mais voltar.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Poesia

       Há isto. E só aqui, eis o silêncio das palavras que não se pronunciam, dessa coisa toda que não sai do coração. Pousam gotículas mansas centímetros abaixo da gola da blusa, - líquido este, que, saiu dos olhos trêmulos, enervados de um sentimento reconstruído e remoído por dor... ou por amor. Removente ar, aquele que jaz no tempo em que a batida era somente uma batida de coração e a liberdade era simplesmente                                                                              v-o-a-r.

       Sentimento carnudo contornando os mundos, driblando mães de bocas infames e crianças de estômagos famintos: dizeres sob vozes, entonações e fumaças saídas da boca. Fantasmas dos hedonistas que éramos ontem e do instante sagaz que engoliu todo o chão em que podíamos pisar e agora, agora? Tudo Nosso é desenho no                                               c-é-u.

       E a grande boca nos olhando de cima, enquanto fecho os olhos bem aqui, debaixo e não quero nunca mais... misturo na mansidão do teu colo e no desprezo das tuas mãos, estas, que ainda me afagam os cabelos. Talvez seja o pileque: champagne, tequila, vodka, mas o meu mundo gira, e o de fora também, e, apesar de você, toda aqui, um lugar só pra mim, afago quente, hálito bom, coração aberto, eu continuo me sentindo                                                                                                                                                                               t-ã-o s-ó.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O Ponto

       Enquadro-me no espaço em branco, emoldurado na parede porque no quarto já não tenho lugar. Noutras horas sou o ardor das plantas dos pés marcando o chão, deixando rastros por todo o quadrado, vazio, noturno e de ar quente, imundo. Arranham as cordas aqueles – poucos – que precisam falar desse jeito unilateral e estridente e tão faminto. Passo ao passo que digo coisas sem sentidos, vou indo e somando anseios, moendo horas, tendo tempos para ser tempo e estar em cima do espelho, e ser o ponto: nesse instante eu me sufoco!

       Ando atrás do pensamento, percorrendo o vento de ontem, o som do instante passado, da mortidão do anteontem, o meu além é uma penetração decadente e orgásmica. Mil dessas coisas fulminantes permeiam o que do chão sobe ao teto em fricção, em movimento exaustivo que aos meus olhos são preguiçosos, tênues... tão crus de qualquer memória e esperança e nem eu mesma reajo diante do inesperado; ouço qualquer coisa que há muito me impermeabilizou em êxtase.

       Penso que Nossos desejos devem ser reagentes de Nós mesmos: nem nossos passos, nem mesmo nossos pulos, essa languidão, a batida de coração e o sorriso malevolente, o grito esquecido no canto do quarto, os cigarros em cima da mesa, a chave debaixo do travesseiro, a janela toda aberta... esses olhares que nunca dizem algo, e as mãos que se movimentam rapidamente na tentativa dum sussurro trambique criativo, de tocar as pontas dos dedos de um arranha-céu, de contradizer qualquer infortuno de ontem ou esconder a escuridão em flashes, fósforos ou guimbas de cigarro no cinzeiro

       – Os desejos são mais fortes, mais fugazes e mais volupiosos que Nós mesmos. Num momento não se quer nada, não se pensa em absolutamente nada, gelatinoso e estagnado, somando-se a qualquer coisa, adquirindo textura e tonalidade e noutro momento, após o desejo avassalador vindo à sua mente sem qualquer consciência, querer ou concentração; está tudo acabado, prestes a ruína certa, teu corpo tornou-se o próprio desejo, a própria fugacidade, volúpia, força: és agora volátil.

       E lançou-se aos mundos da imaginação disforme. Irrealidade, e não sente mais o nó que embatucava sua garganta em outros mil nós. E depois do tudo, pressente o estardalhaço da tentação, és O Ponto.

 

 

       . és o início de qualquer tentação. És.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Sobre as sensações

       Depois do mundo, é o secreto que respira por nós e somos nós que, também, caminhamos com um olho fechado e o outro de qualquer jeito. E depois, um pouco depois ou não: caindo, lamentando, amando, gritando porque chorar não adianta mais, ir indo e rindo percebemos que a vida segue num rumo sem prumo. Numa coisa sem linearidade e na ousadia sublime do instante, que pulsa, retroage, bate no coração da própria vida e do nosso próprio pulso. E assim, vai: amargo, tranqüilo, amando odiar-se e odiando-se amando, invocando o mundo, provocando tempestades, impedindo ou fazendo tufões e maremotos. E quando pára, adormece no encanto e no quarto em silêncio seja por, talvez, ter sido tomado por aquela diferença básica entre os seres: não sabe e não sabe que não sabe, sabe e sabe que sabe. Este e em resumo de toda a grandeza é motivo de silêncio e ausência, sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância[1].

       Acorde! Com a sensação de ser um soberano, um rei, um príncipe, um semideus e, a verdade é que... não dormiu tanto assim e tudo o que fora sonho já se perdeu, esfumaçou na medida exata em que, intuitivamente, seus olhos foram abertos. Porém, à parte, tens agora a consciência de tudo aquilo, de horas atrás, de ontem. E, por isso, captou a essência da manipulação, consegue usar máscaras. Consegue escrever não sobre seu signo lunar, mas sobre seu signo ascendente, sobre o que realmente sente. E se, por acaso, começar a pintar; suas pessoas, paisagens, corpos, seriam inteiramente disformes, pois depois de toda a descoberta da ignorância defronte você e a humanidade, tudo o que enxerga é assim: disforme. Mas não, olhando-o na rua, andando para pegar o ônibus, você é completamente normal, não é um novo personagem de Freaks, muito menos uma das pinturas do Schiele, mas é que a arte é uma mentira que revela a verdade[2] e é por isto que escreveria sendo transparente, mas, falaria, ainda assim gaguejando porque é tímido demais e usaria ainda as suas poucas palavras de sempre.

       E mesmo assim, com todas as descobertas, redescobertas, caminhos a seguir, passos não dados e quilômetros rodados, centenas e centenas de máscaras trocadas. Depois das inúmeras sensações que sentiu de ser tudo, desde semideus a reles. E além, todas as vezes que fora além do ponto, sempre além do ponto e as sensações que viraram personagens e as personagens que viraram exatamente você. Um dia um Maquiavel contra si mesmo. Mas sempre, em todas as investidas de ser não sendo exatamente, sempre fora seu próprio amante. Thecov já dizia que o homem é o que ele acredita ser, e foi nisso que acreditou no tempo magnífico de todas as personagens que vivera e, que mais tarde foram literalmente mortas, assassinadas, arruinadas, suicidas, fatalistas. Mas que ainda assim, não deixando de ter carne, ossos e vasto estrago viveram com um coração na mão, esquivando-se do que vier e ouvindo o sopro da vida. Por isso talvez digam que a arte imita a vida, ou talvez nossos “bichos” depois de criados tenham autonomia própria, uma espécie de vida, e fique em baixo quem tiver coragem de domar e os quiser novamente; pois há neles a vontade de respirar, de expansão e contração, de um certo amor liberto do mundo e das verdades tão ditas: nunca limitam-se.


[1] Citação de Sócrates.

[2] Citação de Picasso.

sábado, 8 de novembro de 2008

Nudez

       Sou úmida. Sempre de olhos líquidos e, agora, bem em cima do asfalto quente, ensopado, borbulhante e imundo de mim já não lembro o gosto que tive ontem. Engulo espaçadamente gotas de chuva ácida e fria, gotas quentes e salgadas e, entre o milímetro disso e aquilo existe a vastidão: paira tênue um secreto bem-estar subindo pelas pontas dos meus dedos, enraizando no meu cérebro... tudo, tudo o que arranhava antes, e que agora só é meu futuro imediato. Nesses tempos a vida soa excêntrica e imediatista, sempre soube de tudo isto e falando agora, sei bem que lhe parece muito pouco.

       Quero mais que o mundo todo respirar, expandir, fluir junto à enxurrada ali do lado, ser-água e quase me torno a própria água. Sem movimentar muito e não estragar o tempo paralisado no próprio tempo, os olhos que olham nos olhos e a vida que bate na própria vida. Um coração enjaulado na mão, − tudo suave, tudo cinzento, os passos em volta, a lentidão aberta das estacas d’água, o hermetismo dos carros... e o mundo agora nu, preso na minha retina que já fotografou números enquadrados, paredes verdes, vozes que penetravam, perfumes que nos encostavam e palavras que se acrescentavam...

       Agora é um oco, vasto-nada correndo em silêncio porque não se pode gritar. E não se pode mais agir, fecha os olhos, entrega-se como mais um corpo, a mais, e de mais a mais, sempre fora isso, no meio da multidão e sendo só. Pedaços de mim vão subindo, outros descendo, se misturando ao asfalto, à água suja, todo meu amor é minha lama e ainda tento me levantar, mover os braços e gritar... engulo amargo.

       − É breve, lástima, verme! Tudo passa, dá-me tua mão, entras no perigoso e labiríntico caos de mim: me puxa pra fora, me estilhaça contra a parede de vidro e me remonta. Ando meio zonza, atravesso meio mundo. Dou um trago, mais um, mais um, mais um e me acabo porque eu precisava reviver. E volto, refazendo o caminho anterior, recolhendo tudo o que era meu e dessa vez, quem anda nua sou eu.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Duas: quase três

       Pálpebras enormes e lágrimas ardentes velam um sono que eu não veria nem de olhos arregalados. Além da minha planície gelada, com os pés descalços vou repetindo algumas dúzias de palavras bobas e é só por que depois do meu fim, ainda lhe faço dormir.

       Metade de mim é você e a tua metade que não é sua mais me é. E nos tempos mais dóceis, nos segredos mais inexatos dos ventos, agarro essa verdade aveludada com a ponta dos dedos e respiro o que for de cheiro... e sei bem que me perco nas idas e vindas do gosto que completa o meu, na realidade que é minha fuga. De toda nossa percepção em comunhão. Nós.

       Línguas desdobradas, palavras impermeáveis e coisas sempre desarmadas. Vou me desmanchando aqui e depois reabrindo de novo; tudo o que eu já deveria ter lhe dito. E tosquiando meu pensamento e os dedos: fecho os olhos e espanto! Enxergo displicentemente o mundo de Psiquê e o amor. Reconheço o sonho e todas as palavras que completam e completam e giram em torno das minhas.

       Venta frio, sombrio e forte. Mas não, não chove mais. Gosto de toda essa força e talvez essa insuficiência toda tenha se dado porque é primavera e minhas páginas estão querendo saltar pelo quarto: tudo o que faltar, o vento levou. Hoje a insuficiência de palavras quem causa é o vento, não que o fluxo não tenha sido grande o bastante, - é que vou com o fluxo, como se, contudo, eu fosse remetente e destinatário, mensagem e código... e o vento, toda a força é você.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Cena erótica – sobre divãs

       Sento. Levanto: morro de véspera. Agudo! Inusitado permeia as idas e vindas do dedilhar nas teclas disso ou daquilo que conduzo com pouca destreza. Mordisco o lábio inferior. Um suspiro! Puxo um cigarro do maço nem cheio nem vazio, acendo rápido e trêmula. Trago forte, direto aos pulmões: a todo vapor, a todo vapor, vapor, vapor?!... já não sei.

       É vasto, contudo, continuo minha cantiga, toda a minha esperança que conduzo num pacto comigo mesma. Levanto, sento, estremeço inteira, já sou um gatuno de olhos cintilantes observando as erupções de um intelecto-vazio e de uma mente quase que completamente sã. Confesso tudo, pois estou na hora do desenrolar, desenrolar-me de cobertores, fios recobertos por camadas e camadas de espécie de algo superior a ouro e santidade além de qualquer santo: minha antítese da nudez e o divã.

       Conto sete passos, falo sobre todas as coisas, e ao certo não sei sobre o que digo. Era manhã, e eu sentava, levantava, fumava, mordia o lábio, roia a unha do dedo mindinho, escrevia, mordia a caneta que usava para rabiscar os erros que eu mesma produzia enquanto redigia pensamentos desconexos de mim ao laptop anos 20. E agora é à tarde e estou aqui; com a folha amassada entre as mãos, deitada contidamente, olhando a sala limpa, arejada, repleta de muitos livros e poucas estantes: livros que servem de bancos, bancos que servem de livros e vice-versa. E uma parede em especial me prende a atenção, não se usam mais papel de parede, mas aqui tem e é beige, com ornamentos sutis em verde claro, um verde que se mistura com o beige, sem deixar de ser verde claro, embora eu não saiba identificar bem, ou explicar exatamente o tom de verde, talvez um musgo bem, bem clarinho e suave. Nessa sala tudo é suave...

       Livros muito antigos. E os passos Dele são lentos e sua voz é mansa, tão mansa que quase me conduz a um sono leve. O chão é branquíssimo, e tem uma enorme janela, que se faz passar por parede, com uma cortina de voil indiano branco, que eu poderia descrever como insignificante se não fosse tão bonita! Fecho os olhos, sempre fecho os olhos porque, bem, tenho de me concentrar nas minhas palavras, tenho de não olhar para os olhos azuis por detrás das lentes dos óculos Dele e tenho de também não prestar atenção na sua boca silabando as palavras que eu quero ou não ouvir. Ele me indaga sobre porque não correspondo pessoas que não compartilham os mesmos sentimentos que os meus; isto de modo geral, sentimentos como um todo. E eu não consigo explicar, esquivo-me de tudo, sempre, do mundo, esquivo-me de grande parte dos acontecimentos, mas continuo vivendo, e desta vez, comigo ao divã, vermelho-sangue, e ele sentado à poltrona, vermelho-sangue também. Olhamo-nos friamente, neste instante que esquivo-me da indagação que não foi necessariamente uma pergunta.

       Ele é um sujeito pacato, sensato e inteligente. Acha que sou uma artista, uma escritora; duas vezes por semana se põe a ler calmamente e criticamente tudo o que produzo, embora, eu, timidamente não goste de lhe mostrar minhas produções. Ando adversa, ando sem andar, compenetrada no meu eu e analisando os demais; grande parte disto devo a ele, nesta convivência sem defasagens e com uma margem de erros mínima. Levanto-me, olho os livros calmamente até chegar à janela e lá fora parece tudo tão calmo e é por que não ouço ruídos, barulhos, buzinas. Volto ao divã. E no exato momento em que me sento, lembro-me de uma conversa intensa, porém breve:

              Ella: Quando você vier, aonde prefere?

              Sabina: Prefere o quê?

              Ella: Fazer sexo comigo!

              Sabina: Tenho tantas opções assim? Sua cama é de casal?

              Ella: Gosto de fazer sexo na banheira... minha cama é de solteiro.

              Sabina: Nunca transei na banheira, mas parece interessante!

              Ella: Já sei pra onde te levo. Você vai comigo ao Divã; vai ser sempre no Divã!!!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Segredos para Lottie

       Se o tempo parasse, para então eu juntar todas essas coisas perdidas nos pântanos, a vida seria melhor, Lottie. Tronco luxurioso. E os meus olhos se enchem de lágrimas, e as minhas lágrimas se enchem de alguma coisa secreta, que vem do delta no seu paradoxo venusiano e inatingível; tornei-me incansável nas investidas de olhares avessos e retóricos. Pois sou eu quem se cala sempre e quem se despede sem um aceno, vou indo de leve, de mansinho, deslizando no infinito, como se a mim fosse tudo confidenciado: o prelúdio do fim.

       Tiraram-me as mãos dos antebraços, tiraram-me os braços dos ombros e as pernas para que não eu possa chegar até a ti. Tenho olhos culminantes e até o mais distante e grave deslize consigo gravar na retina, fotografar por detrás dos cofres encharcados de sal e água quente. Vim do mar porque não tive outra escolha, e por isso meus olhos são cristalinos, moles e líquidos.

       Coro as bochechas, a face nua inteira. Vejo-lhe sem saber exatamente o que és. Sigo a estradinha que me leva até o caminho do encantamento, até o portão aberto e depois a casa toda sem móveis e as janelas abertas, redemoinho de poeira e cabelos louros subindo, subindo, dançando no meio da sala de jantar. E aqui sou o som de tudo em volta, sou os passos, e sou a mobília e sou os convidados e sou a própria comida. Faço-lhe o favor de me calar.

       Ando percebendo – sem andar – aqui mesmo, bem como o mundo é... petit Lottie, a vida traga-me num desajeito tão grande, num desgosto imenso e eu, enquanto só eu; quero remendar tudo, sair costurando as nuvens, os grandes buracos acinzentados que percebo quando olho para o céu nesses dias de setembro. Embora toda a chuva e ventania e toda a eletricidade pairando no ar me cause um êxtase e felicidade enorme, sinto vontade de sair remendando tudo, deixando as coisas como deveriam ser, ou todas brancas, como se o céu fosse todo de algodão ou todo azul, profundo e tácito.

       Mas não, eu não seria capaz, sei que há a volatilidade. E também sei que as coisas giram, e por tudo isto, desisto. Mas não morro. Continuo, e não disse quase nada, fico atrás do pensamento. Falo no destrambelho a mim mesma, porque contudo há o que sobra, palavras perdidas nas entranhas, grudadas na mucosa, na relva, nas plantas selváticas perdidas por entre os dedos de Lottie, que me espera, adormecida na cama enquanto penso que ela me ouve.

       Falo e falo sobre o dia, sobre a brisa da manhã, sobre a volta, o porvir e o amanhã. Mas, não, Lottie é só uma menina e já está dormindo há pelo menos uma hora num sono profundo, mas leve, leve... a mãozinha encostada no rosto, mechas louras perdidas por todo o travesseiro e o corpo todo desprendido do resto, como se flutuasse no ar, mesmo em cima da cama, atrás de mim. E eu, uma egoísta, tenho vontade de acordá-la, sacudi-la e contar tudo sobre o mundo, sobre todo mundo e lhe dizer que, apesar de, há esperança e “apesar de, se deve amar”.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ecos

       Não só eu gargalho; não só eu, prolixamente gar-ga-lho. Há!Há!Há! Essas coisas todas impermeáveis vindas de outros séculos, ressonando no tempo de todos os instantes. Olho fixamente para o lado de fora, pela janela porque não quero perceber, aperceber-me olhando-a e só quero ouvir e até nunca mais.

       Eis o reflexo: bestificada e atenta, sou eu quem acena à medida que o tempo urra, sou eu quem tem medo dos autos, das coisas, dos falantes, das ações e do lado de fora. Pois eis que há a ascensão contra a demência e eu estou sentada nessa poltrona, encolhida no mísero canto que permito-me, no canto de cá e por nós: sou tu-eu, eu-nós, és-tudo. Enquanto tudo girar e eu encontrar o fecho ou seria desfecho? Quero calar esse fluxo, coisa destrambelhada que espalha de acordo com a altura do meu pulso, a palpitação dum coração que no descompasso se contorce inteiro porque ainda há vida e há de se viver.

       E se tudo há é por que não só eu sou assim e equivalem-me em se deixar. Ela de repente sorri, e de repente fecha os olhos enquanto sorri e depois está gargalhando e depois não tem mais fim e eu estou acompanhando, mas como em câmera lenta, como se o mundo – nesta altura – já girasse bem, bem devagar, num sentido primordial para que tudo acontecesse em perfeita simetria e felicidade. Deve ser essa tal ressonância, essa tal impermeabilidade que não deixa infiltrar respingos de outros lugares, outras coisas que não seja o som secular que ainda ouço repetir...

       E logo desdobrar-me-ei em festim, confete e serpentina. Serei esse tal carnaval que só ouço falar, serei ainda mais que a minha gargalhada inconfundível ao entrar em qualquer lugar ou ao sair. Deixar essa marca na volatilidade do espaço me é algo sensual e tentador, eco da repetição, colagem da palavra, do som sem entendimento, signo, cercles, e não estarei mais a ser acompanhante e mera observadora: serei o que circula. Tudo em volta.

domingo, 28 de setembro de 2008

O divã

       Frases complacentes permeiam minha mucosa. Rodopio na inexatidão de um segundo enquanto respiro e... silêncio: espero o tácito prazer da certeza, fecho os olhos, enquanto reproduzo sons de outros continentes, tant pis, tant pis. Estes, quebrados em pequenos acordes inundam a sala, minha coisa saindo da boca e dizendo tudo o que deveras sinto, sou eu e nada mais.

       Limito-me em ser. Sento-me na poltrona em frente ao divã enquanto o Sr. Invisível limita-se em queixar-se sobre o que deveria sentir. Sinto as dele palavras titubeando na atmosfera, sei que sua fala é quase primitiva, no sentido de não conhecer o que se diz e ouvir somente o que digo, como: circunstâncias, limitar-se, porquê, talvez... (...). Meu pensamento desloca-se no ápice desse tempo inexistente e transmuto-me novamente para trás; quando falava antes sobre eu: rogo a quem toda essa aprendizagem forçada, no deleito obscuro da solidão enquanto sempre vivi sem perceber?

       É o vento soprando, forte, estridente, os papeis querendo levantar vôo, as cinzas formando um pequeno redemoinho e eu aqui; olhando tudo de camarote enquanto penso sobre o que há e sobre todo o resto que não deve existir porque não conheço, ainda não conheci. Preciso respirar, abrir paredes, expandir-me na medida em que os minutos passam e as linhas das páginas são preenchidas de idéias que eu mesma não consigo compreender bem. Ainda, porque ainda ouço o Sr. Invisível falando e falando, agora, sobre o que não sente e como tudo isto incomoda-o.

       E os sonhos são leves, e breves como espuma. Ele é uma dessas pessoas que não percebem ou não aceitam a mágica do porvir, do completar ou talvez: completar-se. Digo a ele que, quando tudo é breve, leve e frágil... devemos então, em vida novamente, completar, do jeito que nos cabe, como nós nos permitirmos. Sr. Invisível me reprime com um olhar fulminante de repulsa e se cala. Então me calo também. Silêncio é tão acolhedor quando não se têm verdadeira vontade para conversar e é tão verdadeiramente sombrio quando se quer falar e tudo é inapropriado e monstruosamente calado demais.

       Meus ossos parecem se fragilizar de acordo com que o tempo passa, sinto o meu corpo querendo ir para algum lado e não tendo saída, os ossos são comprimidos, estilhaçando-se, esfarinhando pouco a pouco e logo estarei rastejante ou enfim livre e elástica. Expandindo e retraindo conforme a condição dos nervos, do mundo e de todo o silêncio, apaziguado ou não por verdades, mentiras ou situações em que tudo pede um só grito.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Bliss

   Ela toca os lábios docilmente. Cerra os dentes, olha o homem que está de pé a sua frente; tira as mechas de cabelo da boca e coloca atrás da orelha. Cabelos ruivos, brilhosos e lisos. O homem sorri e lhe segura à mão, assegurando-lhe estar tudo certo. Estou olhando e observando meticulosamente tudo de camarote, no banco bem em frente enquanto tudo chacoalha. Luzes, sombras, mais luzes e os rostos dos dois às vezes se aproximam de mais, sinto o bliss, quase que em mim e seguro-me por dentro porque é como se a minha barriga sentisse frio, e não a deles. Ele fala sem parar enquanto a engole com os olhos puro e ternamente, como numa frieza automática, ela desvia os olhos e sorri mecanicamente.

   Sempre não posso ouvir sobre o que conversam, ouço música e se não ouvisse uma bobice me dominaria por completo, ou achá-los-ia tolos e apaixonados demais com assuntos demasiadamente ridículos ou a ironia de observá-los tão cruelmente me atormentaria e eu não conseguiria mais; a tola seria eu, a errante, que além de olhar, ainda ouve demais. Prefiro escolher um dos sentidos e agarrar-me então a ele e não soltar, nunca mais:

   As palavras se envolvem, enovelam-se, umas nas outras, da boca de um da boca do outro. De um ponto para o outro. E atropelam-se, percebo que se desajeitam quando falam. Às vezes falam na mesma hora, e logo após um silêncio horroroso de alguns segundos toma conta de tudo. E o outro resolve romper essa barreira novamente e de novo e de novo; espio com olhar de anciã, reprovando ou aprovando as aproximações.

   Tudo parece passear tacitamente entre eles, mesmo entre enxurrada de palavras e gestos quase secretos e brilhantes olhares; o homem parece perceber a suavidade que paira no ar enquanto a mulher sorri, – ela está sempre com um singelo sorriso – e se aproxima de infantil e nua: tasca-lhe um beijo na boca, desses rápidos. Ela, ela retribui e o olha com franqueza... bliss, felicidade, arrepio. E eu também sorrio, retribuo com sabe-se lá qual olhar.

   De movimentos esculpidos nos segundos, interstícios de tempos remotos e maremotos de torpores e odores de frenesi que saem dos poros sem que percebamos faz-se a paixão desligada do tato, fato, história, consumo e horror. Apenas o aprisionamento na retina: pequenas lembranças de imagens, todas estas, coladas uma após a outra, série de movimentos, fricção de rostos, gestos, formando cores, sensações subumanas, - e dá-se então, tudo o que não se sabe, têm-se o que não pode, o incapaz, inconcebível, a construção do inamovível:

   Estatelado no banco, eis-me a olhar. Eu sou, tu és. E não preciso de mais. Respiro inteiro!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Sobra o esvaziamento, vazio

   Percorro todos os ventos porque esses percorrem entre mim e tudo o que há. Dentre todas as coisas o que posso alcançar é o inalcançável e vou levando; percorrendo mínimos detalhes entre o chão e o ar. Estopim maldito que me alavanca e uma perna de cada vez, e uma na frente da outra e um gesto sensível e uma palavra assim, saindo pela boca sem que eu saiba: tudo acontece pelas madrugadas sinceras enquanto não sei viver e não percebo morrer.

   A música saindo de algum canto do quarto, passando pelas paredes, chegando aos ouvidos daquela que dança à voz da língua estrangeira que se conhece e se beija para que se absorva inteira e não se passe em branco nenhuma falha ou ruptura de entendimento; talvez este seja o método repentino e universal dos que engolem amor, e não podem, em hipótese alguma, perder um milésimo sequer de tudo isso que se respira, aspira e guarda: nos cofres.

   Aprendi, miticamente a acreditar no divino de todas essas coisas que transmutam entre os corpos alçados nos topos, torpores, e arranha-céus. E de maneira mais sã, e ainda assim crua, vivo discernindo o que é realmente cru de mim e o que é que agreguei dessa maneira tão rápida, porém, não efêmera: és amor segredado e puramente quente. Amor de línguas e fitas que saem pelo estômago, pela ponta dos mamilos e dedos que falam, falo-te assim: vou-te ao encontro, no cheiro, junto ao vento, transmitindo mensagens criptografadas – do meu jeito ensandecido e retórico, eu e tu entendemo-nos de maneira desentendida e falamos por códigos, meu oculto não veio das convenções formais, de grandes e grandes, doutrens. Somente dois, que somos nós – que correm a mil quilômetros por hora e por agora tudo basta!

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Fluxu (aeternu)

 

   Disseram-me que “eterno” soa na cabeça depois que disse sobre eterno: ocorreu-me agora que as pessoas são em síntese, eternas, pois, não se conhece o princípio, não se conhece por inteiro e, nem nós mesmos, não nos damos. Não nos deixamos por inteiro, não somos o princípio das coisas, só o começo dos instantes que logo se esfumaça e não se apercebem e não se seguram entre as mãos. Conhece-se o agora, e esse é sem princípio e sem fim, começa sem que se perceba e acaba como um movimento involuntário, quase que como todas as vezes que os olhos piscam por minuto ou o coração bate: eis o eterno das pessoas e o horror de tê-las. Conhece e quer se comer de imediato, mas sabe não poder, sabe não ter tamanho o suficiente; eu não tenho. Meus pesadelos começam aí, onde perco-me em difusas controvérsias sobre o que é poder. Tenho saudade e tenho fome, tenho horror e a paixão que me domina e, no entanto, não posso. Nunca pude. Não me cabem e eu não caibo, a eternidade paira entre a pequena ponte invisível entre eu e a vontade, segue assim: agora não me é preterível, o desejo de sugar inteiro o que se percebe com os olhos, o que quer-se para si absorver do outro, o momento, cada instante que sabe que vai ocorrer e depois não percebe que já aconteceu, a sombra do que não tem princípio fica aí, nesse deslize das sensações que vão sendo atropeladas, uma a uma, pela vontade imensa de se querer cada vez mais e mais a proximidade e a doçura que se sente, agora-já, em toda a língua e sem tocar. Um tracejado, ponte de hidrogênio entre essas duas coisas, pontilhado intenso que não se rompe, e justamente, será por não se tocar? Tudo suspenso no ar.

   Será que devo por mim e por vós explicar o sem fim? Pressupondo que conheces o fim das coisas e todas as coisas, devo explicar o sem fim que é isto que faço ao vir aqui e esvaziar? Sempre tive medo do que não tem fim, uma hora dessas vou ter que parar e calar tudo isso, eu sei. Quando me perguntaste sobre o que não tem princípio, pensei também e achei tão bonito, mas quando penso no que não tem fim: será que eu também não tenho fim ou quando eu tiver fim, qual vai ser o meu fim? Porque desconheço tudo e o medo é algo paralisante. Meu cérebro agora entra numa letargia, já não quero pensar no fim ou no que não tem fim, é que ao mesmo tempo que gosto do fim, quero que algumas coisas não tenham fim e se tiverem, prefiro eu ter fim antes. Mas não adianta, já está na minha frente todo esse pensamento e eu só corro para me alcançar e não desgrudar. Tenho que pensar e fazer um grande esforço. Sacrifico-me todos os dias, em todos os minutos e milésimos de segundo.

Continua...

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Fluxu

   Silêncio: prédios desabam em mim. Enquanto por fora tudo é tácito e paixão. Flamejante bandeira da sensação por detrás de tudo aquilo que sinto, secretamente, atrás, bem atrás do que posso sentir: pressinto. Canso-me de tudo, dos ossos e orifícios, sou anil enquanto olho para baixo e choro num piscar de sanidade; meu limiar de distinguir as coisas minhas das coisas tuas. A igualização foi algo que aprendi e tomei, secretamente para mim, sem saber que tomava, e tomei, tomei sem saber que engolia como comprimidos, oito ao dia e mais esses, que não sei quantos são e quantos se somam a mim. Se somam. Ódio da benevolência: estou consciente do que digo e inconsciente do tudo que sinto, mal estar das inexatidões quase que por si só exatas e eu não sei mais.

   Disse-lhe que sentia, e eu sinto. Choro destrambelho, porque sinto demais e não explico e é por que não consigo. Fiz sinal de silêncio intuitivamente ao fim da frase, não deveria tê-la dito, ao fim, percebo que as coisas ficam suspensas, quase que imediatamente suspensas quando eu termino: plainam no ar, feito poeira quando uma fresta de sol bate na escuridão parcial e dá-se as mínimas partículas, que seriam imperceptíveis, - se não fosse o sol – e assim são as minhas estreitas e toscas palavras... todas suspensas, plainando, ofuscadas mas às vezes brilhantes... até que se chocam no chão, de uma vez e não se têm mais notícias, não se apercebe e nem se pode tocar com os dedos, cristal de mar, secreto de mim e por vós.

   Acometer-se seria tudo isso que choco aqui diante de mim mesma? Cenas do meu final-começo. Nasço entre as palavras e me choco entre as grandes crostas no mar; sou livre para morrer, quero. Quero querer e quero frasear a minha morte-vida entre as palavras e o meu grande choque de tudo nas entrelinhas do mundo: respiro, bate, pulsa, pula, germina, oco, vazio, nada... estrelas, constelações, meu osso do calcanhar roído e qualquer dia vou além, do ponto, da margem, da igualdade e pulo. Olho para o lado e só agora, juro, percebo ser noite, e é noite, e sou de verdade: estômago dolorido, cigarro preso entre os dedos, infância, olhos, pernas e meias. Tenho a sombra e a mulher, tenho o mundo e pés e, no entanto não consigo andar porque quero ficar aqui, espero o tempo passar e espero você ficar, porque escrevo na minha loucura, soprando cinzas e esperando o tempo parar de girar... começo no fundo de tudo do que digo a me perder se não prestar muita atenção na palavra anterior, mas não quero prestar, porque só escrevo para me libertar, para te libertar de mim mesma, dou um sopro novamente, uma gargalhada de antemão, pois sei, sei o que virá e prefiro gargalhar antes. E mais no fundo ainda começo a duvidar da perspicácia da invenção: será que foste inventada?

   Vejo reflexo e sorri. Olho para mim e pergunto-me também: acabou? E é só isso e fim? E eu queria que fosse mesmo assim e sempre assim: eis o fim! Mas não é, sigo o que há em mim e não se cala, emana algo que esvai e é eterno, eu ainda não sei se gosto de coisas eternas, mas sei que isso não se cala nunca, como os dedos que trabalham para sempre seguindo ordem de não sei bem o que, se um pensamento, se um atrás, se uma simples ordem do cérebro ou sabe-se-lá-o-quê. Obedeço a ordens e essas são minhas. Secretamente minhas e segredadas. Às vezes sôo fictícia demais, mas não sou. Tudo é verdade, mas não posso provar porque meu pensamento é ilógico e eu sou toda ao avesso. Entenda-me ao captar-me no instante que se segue: aço estica e estremece a cabeça sã, porém, ligada à loucura de maneira imediata. O homem fecha os olhos enquanto a mulher sorri. Estou espiando, com centenas de volatilidades de pensamentos algumas dúzias de hóstias na mão; espírito nu e corpo trêmulo. Engulo todas, em sonho. Porque na realidade eu não poderia comungar, é pecado, mas comungo por ser pecado, na tentativa de que um padre me reconheça na fila como pecadora e me excomungue, mas bem sei que isso nunca acontecerá: continuo me redimindo aos olhos de Deus. O homem abre os olhos e a mulher para de sorrir, tocam-se pitorescamente, quase sem se tocar e se afastam: sentem-se tão iguais que não precisam de muito, escolheram-se e se são. Mútuos e magníficos em sua grandeza de que existem um para o outro e nada os tira de tudo isso: amém. E eu flutuo na extremidade da pele dos dois, sem que percebam e sem os tocar, sou-lhes porque os criei e me são, enquanto tudo pode esperar.

(Eterno não tem princípio nem fim, isto me basta! Parece suficientemente bom para eu ter a certeza de gostar, gosto. Tenho dúvidas quanto às coisas, e palavras, e pessoas que me cercam, mas por via das dúvidas e dívidas, se elas forem eternas, sem princípios e fins, tornam-se adoravelmente desconhecidas e deliciosas de se ter.)

Continua...

domingo, 10 de agosto de 2008

Fluxu

   Tocam A bola com as mãos, ouço o estrondo alto de leve nos ouvidos. Calor; suponho, na minha infância, enquanto morria ao fundo, tristeza amena de menina e a mulher que chegava ou partia. Mormaço calado, suor na testa e nas testas que às vezes se tocam, tocavam-se. Davam-se as mãos e de mãos dadas às vezes íamos até as esquinas altas e altos íamos até não sei onde, éramos. Percorríamos longos caminhos e chegávamos num ponto onde nada mais nos atingia. Estávamos calados, cansados, entrelaçados, escolhemo-nos, mutuamente, simultaneamente: existimos. E agora olho de longe, pela janela, o céu: rastro de fumaça que qualquer teco-teco deixou ou esquadrão da fumaça, riscos lindos no anil e fotografo. Balançar levíssimo de folhas nas árvores, só sei qual é uma: mangueira. Rajadas intermináveis de coisa branca que sei que é fumaça, mas bem poderia ser nuvem em forma e força excêntrica e amém: coisa divina! Bem dizer, a vida é magnífica, e tenho sede de tudo. Alcanço com as mãos porque não sou tudo e o algo a mais alcanço com os olhos e sendo tudo impermeabilizo na retina e guardo atrás: é tudo.

   Escrevo com dicas secretas para não esquecer. E dou sempre coisas secretas para não esquecer. Essa é a base do meu fundamento; e no entanto mal sei qual é este fundamento que me incumbiram e não sei quem. Escrevo no destrambelho e falo ameno para que me entendam sem terem a obrigação de entender, às vezes mesmo – quase sempre – não quero que me entendam, e a graça, para mim, está aí, falar o que os inaudíveis ou imperceptíveis não captam. Mas capta-me você. Essência atrás de essência fora da razão, loucura digna, perpétua, perpetua assim, depois do sol da meia-noite, atrás dos fios, dos pensamentos, dos amantes, de qualquer coisa que não baste ou que por ventura acabe.

   Já sou seguinte a mim, e corro atrás de mim mesma para não desgrudar. Isto há de enlouquecer a você? A mim não, porque habituei-me a essa sensatez de ter de me seguir e ir indo além sem a consciência exata de estar indo e ter a sensação de mesmo estando à frente, estar atrás também. Capta essa loucura inexata que transpareço opaca; porque de tudo minha inexatidão é o que chama. Chama; lembrei-me de Lux novamente, chama de fogaréu, fogueira de dia de São João, velas, candelabro, Igreja. Minha chama é eterna e não apaga nunca e é por isso que te chamo pro mundo da selvageria e doçura do tudo-além, pois não enxergo aqui, é escuro, tateio. Clamo enquanto estou em contato obscuro imediato com essa coisa, chamo-te para cá, gerânios e grama alta, erva daninha às vezes, e qualquer coisa de eletricidade e a mucosa cerebral de encontro a tua e a minha: eis o mundo, que é a coisa descolada dos mundos, que não é bem mundo, é só segredo de câmara de ossos, coisa de dormir e estou aqui, eu espero.

Continua...

sábado, 9 de agosto de 2008

Fluxu

   Decorro no tempo, – este –, que não estarei. Controvérsia nua minha meada, deste desnudo que lhe escrevo sem enxergar ao certo onde é que vou parar, corro sem sair do lugar, sempre estar no mal estar e sou crua. Comi anos luz de qualquer poeira de luar para não sair daqui, não sair do lugar e estar, ficar, estou no ponto “x” e vou continuar, começo assim, vou respirar: o choro estridente, o grito envolto e enlouquecido de uma tempestade tempestuosa mesmo que eu não escolhi, não pude querer, escolheram-me, escolheste, escolhemo-nos.

Disse não estarei, pois estou sem estar, estou sempre em desencontro, me desentendendo, mas estou. Dedos, fibras, suco, saliva. Percorrendo milimetricamente cada tecla, cada vasto pedaço do enluarar que chega sem licença para estacionar no meu lugar. Sempre vai continuar, a eternidade do tilintar de todas as coisas, dos ossos estilhaçados, sumo que percorre cada eco do meu silêncio vazio e a perturbação de Lux. Coisa brilhante, sem definição na minha língua viva e estrangeira. Sou de tantos segredos, mas ainda assim nomeio a perturbação com nome próprio e dignamente diagnosticável; traduzível e, no entanto, por outrens, preterível.

Continua...

terça-feira, 29 de julho de 2008

Palavras suspensas no ar

   Meu bando ajoelhado em frente à privada, olhando teu vômito: rezo. Ilumino lava fluorescente e ave Maria: adoro! Bando de mim, corpo dividido em história: pele depois tinta, depois músculos depois toda a parte corroída pela devastação fulminante e violentada das noites e dias que me matam em piscar de olhos. Ossos, vazio oco, nada, depois o tudo, estômago dolorido, coração pulsante, e é tudo o que penso; sei que tem mais e é o resto. Ilumino-te nesse instante de veemência incontrolável: amo-te e sabe-se-lá por quê: amém.

   De todas as igualdades, risos frouxos, insanidades e amores incontroláveis que passeiam pelas nossas bocas que nunca se encontraram tudo o que mais amo é a certeza do sonho pequeno e a incerteza do que existirá. Olho no fixo ponto e não acredito ir até além do ponto de enxergar teu próprio vômito. Coisa sã que me sobe da barriga para a boca e depois para os olhos e depois pára e desce; volto ao coração e este eu não controlo: bate, respiro, bate, enjaulo afã e respiro. Sou o animal que se enjaula por dentro e sozinho; cadeado sem chave e códigos. Violência de uma eletricidade inexplicável e explode tudo; fujo arredia e corro; falo aos ventos, aos mundos; porque de tudo sou quase tudo.

   Inextricável a essência dos que transmutam sem se olhar. Passo pelas pernas, pelos braços, pelas línguas e mundos dos que vão abaixo; enquanto eu acima, olhando o meu mundo todo caótico e sem nome. Passa você pelos corpos nus e torpor de outrens que por vezes não sei quem são. Encontro-me no voraz e solitudinoso peito deles; porque descanso e não me troco. Não há trocas. Só troco aqui; onde já comecei rasgando todas as páginas de todos os meus livros escritos na pele: venerei em silêncio todos esses momentos em que se tornaram noites, dias, meses e depois, - após a coragem divindade - silenciosamente vomitei defronte algo secreto que não toco e não vejo. E logo após, - ironia -, não sei se confundo vômitos: já não sei o que é meu ou o que é teu.

   Levanto-me. Lavo a boca. Lavo novamente na tentativa de tirar todo o gosto ruim; de despejar junto à água todas as palavras que giram e batem junto ao coração: se perguntares se elas saem ou se sairão, com convicção eu responderei: não. É inextricável, é magnético, é inexplicável, boca, língua, compaixão e não passa, não mata e é só, por vezes, explosão. Olho o espelho, sem olhar o rosto, sem olhar o turbilhão petrifica que é a minha cara, que é a minha boca com tudo e ainda assim suave, suave, suave. Suavíssima sensação de correr e não sair do lugar, nunca, nunca mais.

sábado, 26 de julho de 2008

Esperança do ode (Esperança do canto)

   Escrevo cheia de crimes a cometer, porém estou lúcida: até quando, - será - que me corresponderás? À lucidez, eu pergunto. Fagulhas, álcool, cigarros e não acendo o fósforo; há o medo de que a casa pegue fogo, de que o corpo se corroa, de que a alma em chamas se perca inteira e nua. Engulo o azedume do meu peito de um jeito extravagante e vá ele, direto para o estômago corroído, amaldiçoado pelos infortunos de toda uma vida.

   Olho as coisas sobrepostas do meu jeito volátil e condescendente. Não estou a par quando não quero estar do que sombreia meu mundo, inebria a colores as voltas dos outros e o meu beijo, todo meu, que é só meu. Céu da boca maremoto, felicidade do frio e da mente sã, corpo trêmulo e um pouco de vermicida nas ranhuras: para além da loucura!

   Quero estar livre para quando o outro chegar; libre, livro, libro, Paris, Barcelona, língua no meu teto perambula todo veemente e só, não lhe digo mais. Estou a silenciar-me no deleito em que confundo a realidade com a realidade doutrens. Quando tudo me giram palavras de outro mundo, línguas dobradas e dobradas pra se falar verdades apaziguadas e eu rio, com cara devassa-amena: agora inquieto-me na frente do espelho gosto rosa ou vermelho na boca, engulo o riso, pode ser agouro.

   Agouro é verdade, coisa que estonteia a mente que parou de pensar; não quer girar nesse sentido em que alguns de nós giramos. Ainda quero estar aqui, na verdade libre, para quando eu partir em pedaços fulminantes; quando nós não existirmos e contágios acabarem. Perguntas partirão, respostas serão nem subterfúgios, nem navios, nem gatunos enluarados. Um mar todo de pétalas: o teu enterro em que eu não estarei. (O TEU ENTERRO EM QUE EU NÃO ESTAREI)

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Atrás de algo a mais

   Como a vida e depois vomito: o homem carrasco e a mulher insensível. Encaro todos, os vícios, seus vícios com misericórdia e pedido, agora. Dubitabilidade a minha; estar sendo invisível. Sou fantasma encarnado num coração que bate incansavelmente, mas que um dia cessará. Infortuno o meu paradoxo sozinho que já não é mais solidão.

   Nicho a condição bela e subordinada em que encontro a paz; empilhado de azulejos, recanto perfeito e o pingar frenesi das gotas d’água. Estou “solamente-nua” colada no meu coração-fantasma que bate e baterá nos instantes que virão, vieram: me engolirão!

   − Engoli as tais palavras, a tal solidão: mando sinais de fumaça, meu fio cerebral de encontro ao teu, ligado ao crânio, morto, talvez. Bombas, mísseis, fósseis, coisas jurássicas, sou de tudo pré-história e não meço esforços ou medidas.

   Ganhei uma certa fraqueza ao ligar-me à sua existência que de tudo só me chama; igualizei toda a minha resistência para compreender que não posso cair e que só tenho de levantar quando me deito porque quero me deitar. Fui rejuntando todos os sonhos pequeninos, com cola instantânea. Reagrupando noções e engolindo junto às pílulas e comprimidos a única coisa que nunca quis aprender: esperar.

   Esperar, que mal há? Infindável a minha condição. Vou estar sempre a esperar. E tudo isso, tudo isso, tudo, aprendi com você, que vou esperar até o meu coração cessar e logo após recomeçar, até minha latente solidão reaparecer e o meu olhar se perder. E quiçá “Um sopro de vida” voltar! Sempre adversa, sempre dúbia, perplexa, paradoxal: sentindo sem sentir e vivendo sem acreditar mesmo viver, porque a constância-máxima da minha vida é a pessoa-eu-defronte-e-atónita.

   Quanto à vida, essa: meu coração bate normalmente agora, talvez umas 70 vezes por minuto, não lhe vejo. Respiro por mim mesma, sem tubos e sem sopros pela minha boca, apesar de eu achar sopros de vida um jeito gostoso de se despertar do letárgico sono. Acordo todos os dias e me levanto, com preguiça, mas sem medidas. Sorrio e espero porque de tanto engolir, tudo isso, eu, − sinceramente − aprendi.

domingo, 20 de julho de 2008

Coração de Furacão

   Fora banho mar. Vômito contido logo pela manhã; passos miúdos suspensos no ar; nunca saio do lugar. Esses poros abertos que me olham debaixo e que espio de cima, nunca saio do lugar; vômito contido hoje às 09:27: será amor, Doutor? Meu coração, dessa vez; por via das dúvidas, dívidas e amarguras, preso dentro do corpo, doutro corpo, tórax: câmara feita de ossos e coisa de repouso... bate... respiro!

   Revolta ao amanhecer, coração atordoado, pulsante entrelaçar, era não o amor, não o amar: sonho todo bêbado, trocado de pernas entre as pernas minhas e alheias, gargalhadas e sorrisos e como são bonitas as flores de Pequim! E mais um desses repugnantes que deveria cuspir: sentimento, direto ao chão, e veemente, ávido, queria ir logo à parede, ao infinito se pudesse: guardei, guardo ainda, com gosto ruim na boca, com água para segurar, empurrar, e biscoitinhos do café da manhã para que seja doce e triunfal a minha entrada no entardecer.

         E a tarde fora enlouquecedoramente atordoada: "stars grinding, crumb by crumb... " e coração fisgado agora ponta cabeça eu escrevo:

   Morra-se e eu termino de matar-me. Morram-se (menos uma) e eu consigo viver-me até o último gole, a última tragada, o último tudo do mundo; fiel lágrima, desesperança amena hoje-já, inquietude solitária na cadeira, agora mesmo no chuveiro, logo mais na cama fria de molas. O entardecer já passou, a noite chegou. A festa acabou: todos os risos, todas as lágrimas, a fúria, o choro, a espera. Bater de unhas no plástico da cadeira e a meia dúzia de palavras trocadas: o desconhecido.

   Correr na sensação enquanto tudo acontece bem diante dos meus olhos correndo perplexamente: perder-me sem perder completamente de tudo a consciência exata e levadamente apalpar meus olhos inchados e cansados; glória ao despertar da maturidade órfã de qualquer coisa... solit.....ousei. Solidão! É sobre solidão que tenho de dizer. Solidão o que sinto; antes era solitude a minha estada na cadeira, na poltrona macia da sala de estar, nas idas e vindas da cama até os livros ou o diário, lamentação, computador, máquina de escrever.

   Solidão agora, implacável, como osso mastigado, osso de fibra sintética, coisa de pet shop, cortando os pulsos com o vento, roendo os tornozelos de tantos passos rápidos e certeiros contra o chão concreto e que sempre me odiou; ando só, quando não esperava, − secretamente só −, por que finjo ser invisível, por que passo pelas ruas escuras e pelas sombras das árvores, por dentro dos prantos e por dentro de toda a chuva que vier... sobre o que digo? Constelações despedaçadas, migalhas e A mulher.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Espanca

   Reflexo único da ascensão contra a demência. Levantai-me com um soco na boca do estômago dolorido e ácido corrosivo; sou lúcida assim como as estrelas, assim como os brilhantes, assim como as angustias infâmias. Passos, contra-passos e desprezos que lançam, me lançam e lanço; dias crus e frios de golpes, dias nus e cruéis onde se dizem tudo.

   Calo na misericórdia da cama com a lágrima que escorre: com as obscenidades no fluir-entorpercente de tudo o que me gira pelo lóbulo direito e esquerdo, anti e não horário. Giro os dedos nos fios de cabelo: amém, eu não rezo. - Amém, eu peço. Escutai, não, não imploro, renego aos falantes, digo ao mundo o que me percorre na síntese de um instante, na controvérsia da minha parábola-destrambelha-loucamente!

   - Sou quem tu és! Consigo captar as vontades implícitas no que não podes sentir e sinto, vorazmente, loucamente, intensamente: sinto, pois não sente. E que lastimável, e degradante vitoria a minha... e não há desprezo, não há remorso e nem soco no estômago, só há vida, e vivo.

   Capto a energia, de toda a vida; coisa elétrica, coisa passional, coisa mundana. Não sou Espanca, não sou “P” no meu coração, nem meretriz, nem Anaïs tampouco Clarice, mas ainda assim continuo com a frase da Cecília antes de dormir; relampejo miragens, fotografias, remorsos das pessoas secretas, corações tumulados debaixo de sete milhões de chaves e sangue algum...

      - Quem é? (Sempre pergunto, mesmo sabendo que não terei resposta, mesmo sabendo que a encarnação é algo além do possível e não acredito) – quem é? Quem é que bate à minha porta e não entra? Quem é que me estonteia e vai embora deixando rastros de perfume e idéias? Quem é a criação e o divino calcário da minha mente desolada amaldiçoadamente figurativa? És tu, bendita, tão amada, esperada, és TU que me és?

   E eu ainda assim, espero. No anoitecer, no enluarar, encobrir, amanhecer, enlouquecer das minhas cabeças, dos meus corações e escarros; dos meus vômitos, estômagos, ossos, veias, vastos e estragos. Nesse todo e contínuo embriagar de não saber além de quem, além nem de mim, além “dos dois”, aqueles dois. Osso gira. Manivela, maquiavélica sensação na sala de estar e o tempo barulho, tilintar penoso e apesar do porém e do pólen e do mel: - estou a esperar.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Solitário num bater de asas

   Boa safra e envolta de vapores minha cabeça entardece, chego de boca quase muda; ouvidos estonteados, nevoeiro enluarado e céu todo de mar: lúcida! Luxúria no pensamento debaixo de litros d’água e luzes que piscam sem parar um instante sequer.

   Ainda estou na mesma posição de sempre, frente à janela, observando a fotografia, agora, já, prestes a se soltar da parede por conta própria: O pássaro. Analisando as ranhuras e rachaduras que se estendem ao longo das paredes e se encontram sem que eu perceba e sem o meu consentimento; e mesmo ao meu sinal tudo desaparece, passo levemente a mão em cima do interruptor de luz; - eis a escuridão.

   Exprimo a vida de maneira voraz e rápida; perspicaz. Num segundo meu coração pára de bater e no outro ele já bate enjaulado na garganta e sou uma criança que não controla seus atos: vejo meu reflexo no espelho e observo a garganta pulsante, sou semi-deus, sou quase tudo e dou um passo além do mundo. Ávida, generosa nas palavras, violenta nos gestos e secreta nos sentimentos: coração trancafiado. Todas as minhas tempestades junto às paixões, o sincero ruído que os dedos fazem e o perturbo-vacilo que a mente proporciona nos momentos de rapidez e subordinação ao sentido, amargo.

   Descolai-me do início, onde ainda não pensei em pensar a voar e não bati as asas; olho para o teto enfumaçado e lá está: ele por si só, descolando-se da “pátria-mãe-gentil”... nauseai a minha, porquê preciso do gosto da vida e que seja ao menos agridoce.

   Estendo assim, pouco nos pensamentos disformes da solidão, curtas divagações das lembranças cristalinas, porém gelatinosas do início de um pranto que estende ao longo dos séculos e antigüidades marcadas no corpo e nas bordas dos copos em que bebo: boa safra. Ensurdeço no banho quente, as centenas de gotas d’água caindo ao mesmo tempo sobre a minha cabeça como a tempestade de um fim que perdura. Perdurará?!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Acutu

   Desrespeito latente; tudo o que vagueia indolente sobre o copo, lábio, dentes amargos. Subtraindo, colecionando, friccionando sensações seletas da mente desgastada e amaldiçoada que pulsa como num amanhecer frio e esbranquiçado no norte.

   Des-norte em que encontram-se todos eles; pensamentos amenos da casa vazia, do tudo escuro e esquecido lá fora quando todos se vão. Recolho os gatos abandonados do parque, pequeninos nós nos fios de cabelo, danças secretas e tímidas entre os passos rápidos ao som de coisas antigas como trilha-sonora; vou caminho a fora, caminho adentro, segredo e entremeio.

   Todavia e por dentro, sempre por dentro rasgo alguma coisa e arranco e então cuspo, logo pela manhã; às vezes não dá tempo de correr até ao banheiro, o cuspe vai direto ao chão... ou dependendo da voracidade, porque sempre pode ser um novo coração, direto à parede e explode: como hoje, agora. E sempre e então, e cheio de “e” vou seguindo até onde der, até onde doer e suportar e tiver esmaltes para retirar ou unha para roer.

   − Esperança, esperançosa, sagrada-lágrima! Quero um aguilhão!

   Voltemos às casas, aos silêncios agudos, ao adeus, à boca, aos corpos e copos cheios, à embriaguez; sou lúcida a maior parte do tempo, falando sobre embriaguez, agindo embriagada, falando e cuspindo, berrando e agindo, amando e... amando... e às vezes sonho com silêncios-solitudinosos-agudos, porém, apaziguados. Sonho com o adeus e a volta e os copos cheios, mas os corpos em cima e o torpor, ah! O torpor... agindo lentamente em meus laços, viscosos e sanguíneos como remetentes de felicidadezinhas amenas e luzes... faz mal, ter um estímulo, - que gosto de nomear aguilhão?

   Misteriosamente faço perguntas sem respostas, desconexas da realidade; casa vazia de madrugada, casa cheia de manhã enquanto durmo. Casa vazia à tarde, casa cheia de noite. Volto na fricção dos pensamentos, no fluxo da consciência que é a constância, não entro nos detalhes: detalhes.

   Gritos, sussurros, vento: despenteia os cabelos. E o frio que entra pelos pontos minúsculos do meu pijama de lã. Suporto porque há resistência e tudo isto ganhei ao deixar de desejar.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Esquecimento oco antes do sono

   Quanto vale o impagável-impecável-virtuoso? Estou quase só, atrás de mim, atrás da cama, sobre a outra cama o que pesa é um tapume sólido e, pelo cheiro, constato, ser amargo.

   Desespero calo nessas madrugadas em que não me acordam, em que não me choro, em que me calo e o sono profundo me vem junto à dor de não ter de esperar nada, não ser nada e continuar em pétalas a esquecer.

   Nunca acordo de pólen e suores. Sou despertada por um breve momento entre a realidade e o momento da minha passagem pelo portal dos arbustos secretos dos meus desejos nos sonhos e os movimentos bruscos que fazem pela casa e nas casas dos andares de cima e de cima. Logo, e cegamente, e tateando, encontro o maço de cigarros e acendo um. Trago firme a fumaça, trago firme tudo, até a esperança, até o rancoroso-amor-desperdiçado, eu sei, nestes momentos – de tragadas firmes – que estou vivendo e que estou sendo única.

   Penso um pouco nos fios, nos teares, nos buracos dos crânios que as pessoas possuem e não sabem; penso na existência excêntrica das ligações invisíveis e depois, bem depois... me chega o sono novamente, e junto dele o niilismo, bem devagar, dando um soco bem no meu estômago. E assim, ajeito os travesseiros novamente, na posição que me é confortável para dormir.

   Sono! Sei que estou dormindo e não para sonhar; mas sonho com vozes, sorrisos, abraços, sonho sempre com o abstrato, com tudo o que sou:
Dou grandes passos no infinito, flutuando e às vezes batendo contra as coisas, diante das coisas. Olho do alto as garrafas, as flores miúdas, os galhos, todos eles, retorcidos, mortos, embriagados de sonolência virtuosa e vazio oco.
Abraço firme a minha parte desprendida da fotografia, tento colar, segurar. Prender de alguma maneira e sem querer ofereço mundos além, e um chão totalmente inexistente; uma conversa e um afago. Não quero me afastar, nem no sonho.

   Acordo novamente e estupefata e os olhos se abrem numa rapidez sem descrição e ficam enormes, arregalados. Porque é que tive a certeza do vazio, e a certeza de perder e a certeza de não ganhar? Levanto-me cuidadosamente, não gosto de desorganizar as cobertas, estou calçando meias e vou andando um pouco ou muito sonolenta até a cozinha... às vezes escorrego, quase caio, o chão está assim, escorregadio e gelado. Pego um copo de água e um comprimido calmante porque tenho a certeza de não estar boa hoje. Porque é que numa só noite tenho tantas certezas? Bebo toda a água, coloco o copo na pia e volto, pelo mesmo caminho, escorregando do mesmo jeito, sentindo mais frio, andando um pouco mais rápido.

   Chego até meu quarto, com tudo o que é meu e tudo o que há de oco. Me enfio debaixo de todas as cobertas e uma lágrima me escorre e sem saber, penso que deve ser por ter tantas e tantas certezas hoje, que não é hoje e também não é amanhã: é agora e é neutro, absoluto.

sábado, 10 de maio de 2008

Um galo no crepúsculo errado

   Tenho carências. Tenho urgências. Tenho temperanças; todas essas unilaterais, pois, e por tudo e por si só, ninguém nunca entenderá. E jamais, e porquê, por mim, pelo céu, por que tal entenderiam se não há palavras, se não há tom nem gestos que às explicitam?

   Lanço-me sempre contra um chumaço de idéias e plumas de ganso. Lembro com uma quase-lágrima da frase que eu resmungava para dormir: “Os galos cantam no crepúsculo dormente...” – de um poema da Cecília Meireles. E ainda o resmungo, mas agora quase sem som, quase sem os lábios. Fico no pensamento: que é melhor, mais puro, ou não. Mas é melhor, ninguém ouve, ninguém diz. Não há alguém lá e nem aqui.

   Fico, - talvez porque eu queira, nessas madrugadas de final de semana -, solitária no meu quarto e tudo o que vejo são garrafas, galhos retorcidos, flores de papel, e poucas cores. Tudo aqui soa minimalista e junto de tudo eu, com meu copo de chá-mate com leite morno e um cigarro para me acompanhar na jornada inútil de ter que sobreviver no deleito que vem antes do pranto.

   Daqui a pouco o galo da casa vizinha cantará, acho o fuso-horário dele muito estranho. Não são nem uma hora da manhã. Mas ele canta mais ou menos nesse horário... e então o crepúsculo terá um galo que cantará de verdade. Digo, “crepúsculo”, naquele sentido figuradíssimo de decadência. O galo cantará, a minha dormência enfim chegará e quase tudo está no lugar.
A cama, o chão, os móveis, os adornos, a rua, os postes, o gatinho do lado da garrafa, o aparelho telefônico que nunca toca, a televisão no mudo. E tudo mais; menos eu, na cama, porque estou aqui, frente à janela, pensando no galo, no crepúsculo, na temperança e nas minhas coisas unilaterais.

sábado, 3 de maio de 2008

Feche os olhos e confie em mim

   Não mais o frio, mas chove. Penso, repenso, tenho memória, tenho telefonemas e falas. Sinto a situação pendente; pego o maço de cigarros, puxo e acendo um. Trago com o máximo de força; Trago-o com o máximo de força para perto de mim. E sou vil. Sempre que posso sou vil; porquê com você é assim que tem de ser: vil.

   Chove forte, pedregulhos no teto todo meu, talvez. E você deve estar na rua, pedregulhos na tua cabeça, Amém. Penso nas piadas que ouço e não presto atenção e em todos os “nãos” que ouvi em 72 horas. Soa-me muito, muitos “nãos” em poucas horas. Mas o que se pode fazer? Pisam em meus castelos e nem estou na praia; faço confidências nuas enquanto estou vestida. Preciso conversar e no fundo tudo o que quero é um resgate, um fio de memória que vá se puxando e puxando e enfim: aí está, o meu novelo velho de lã cinza-esverdeada.

   Porém, apesar de tudo e apesar dos questionamentos, haverá um dia em que não me verás mais chorar em sua frente, – tão amargurada, tão humilhada, perguntando se jogas alguma coisa em minha cara – porque estaremos distantes: estarás cuspido (como me cuspis-te) ou morto (como me matas-te) ou então até distante, como propôs, com toda a ignorância e prepotência a ausência, infame.

   E quem me dará rosas? Logo eu que odeio rosas!
Quem me dará uma única rosa de latão com um gancho? E uma caixa, e um livro, e mais outro livro e a idéia de um curta-metragem e muitos, muitos cappuccinos italianos ou não? Ninguém me dará a amizade e o banco do passageiro, em que eu fico calada ouvindo, ou em que falo qualquer besteira e não sôo nada interessante.


   Haverá a morte, tão falada, tão anunciada, já que escolheste. E de todas as outras oportunidades, e de todas as outras qualidades e desqualificações e defeitos, foste ficar, e fincar logo nos meus defeitos, tão gloriosos que me sustentam, e sustentam-nos nos atos ilícitos, cometidos sem vergonha e sem medidas. E mais depois ainda, daqui a dez anos, eu o reconhecerei?
Acharei-lhe estranho como lhe achei à primeira vista? Será que eu vou engordar como algumas pessoas do seu passado engordaram? Ou será que quem engordará é você?

   Mas sou forte; suponho. Agüentarei as pontas, sempre agüentei. Alguns cospem, outros mastigam, mas eu engulo, sempre; mesmo que alguma – qualquer – lágrima escorra.

   Pouco tenho medo das tragédias. Pouco tenho medo dos desencontros e atrasos. O que não gosto mesmo é do descaso, do desnecessário, desrespeito-amargurado. E foste logo comigo, que ia com você aonde quer que fosse.


● A alguém decididamente (não por mim) especial

    – Lorota! Balela. Quero alguma coisa que marque. Mútuo, que não tenha prazo nem validade, nem empecilhos, muito menos vaidades. Não quero tempos, nem relógios. Nem tic-tacs, nem a quem chamar quando estiver, assim, como digo, mutuamente-marcada (o que é eterno). Vou até a montanha e enquanto dormes escrevo pois não tenho o que fazer, você não está aqui para eu dizer; e dizer o quê?
Tudo o que já disse antes, e voltar na mesma história de antes, seguindo a linha desde o começo, que parece interminável e o fim que parece não existir. E dizer que tem de ser assim, porquê vai ser assim e não é porquê quero, é porquê vai ser. E é estranho. Sou normal. Mas é estranho.

   Não, e não. Não mesmo. Você não quero que morra. Nem quero que me mate. Nem quero te cuspir e muito menos que me cuspa. Não quero a ausência batendo em nossas “portas” excêntricas com chaves e fechaduras invertidas, transmutadas.

   Porque senão, e senão...

   A quem comprarei coisas bonitas, em par? A quem direi o que vi, e fotografei, o que filmei para mostrar quando encontrar, e os filmes, e os livros, e os versos e as fotografias... e o amontoado de idéias que preciso, sempre precisei compartilhar. A quem vou pedir que me aceite com defeitos e qualidades, e a quem vou querer o impossível, o incrível das duas maneiras possíveis que penso, o mágico, o irrealizável que realizarei... a quem?

   De quem vou querer ficar perto e só perto, sem falar (e perto de quase mais ninguém)... e dizer que é a pessoa mais linda que já “vi” na vida? Não há quem. Não há alguém. Ninguém.

domingo, 27 de abril de 2008

27

   Poupo-me das sanidades. Fico só e não sei escrever; não sei dizer. Aproximo com olhos medidos e fulminantes de paixão, pergunto o teu nome, apresento-me e sorrio. Estou triste por dentro, mas faço festa aqui fora, converso embora eu não saiba dizer, mostro o meu interesse pela pessoa que está me fazendo olhar para cima e ver que existe alguém a quem eu deva, talvez, só talvez, me curvar.

   Juro amor secreto nos intervalos, em que não temos o que dizer. Juro qualquer coisa que não é em vão nos não-intervalos em que falamos e falamos quando nos entenderíamos mesmo que nós não nos falássemos. Sorrio com os olhos porque lhe encontrei. E só com os olhos, porque a boca está ocupada e cheia de dentes e a língua escorrega no céu da minha boca, formando sílabas e palavras, não sei o que digo: a única certeza que tenho nessa hora é que sou extremamente corajosa, tirei coragem de um fundo reserva pra quando eu encontrasse em carne e ossos e pudesse encostar.
E boquiaberta, e corajosa e pequena, apontei o dedo no teu ombro e encostei; constatei que eras de carne e osso, e o meu mundo pequeno se expandiu, por meio qualquer misticismo ou fórmula que faz crescer.

   Umas palavras soltas, uma frase que constatei ser complexa demais no instante, mas no outro entendi. E transpareci. Respirei fundo e respondi. O meu platonismo no auge; a minha vergonha ao não ter certeza quando falávamos sobre platonismo e eu não sabia, naquele momento, se era “platonismo” ou “platonicismo”, toda a minha timidez que me faz inventar palavras e mundos, outros mundos além do mundo em que lhe confidenciei viver. Estranhíssimo caminho no meio da multidão até encontrar alguém que se pareça com o rosto que eu achei que fosse você, até eu ter o mínimo do mínimo de certeza e perguntar... uma coisa crescente, mesmo com a multidão se dispersando e mesmo com eu indo embora aos poucos, percebendo que nossos corpos se afastariam inevitavelmente. E toda a maior solidão que senti, toda a maior do mundo, porque foi inesperado, imprevisto e intenso, em demaseio intenso. E você indo também, e eu querendo ir, e indo junto, mas depois ficando, decidindo ficar, decidindo não me perder, não me iludir, decidindo decidir que conversaríamos depois, que nos veríamos mais tarde, numa tarde de inverno, num dia de frio, numa noite de ventania; num momento qualquer. E voltei, no do teu caminho contrário, até com dor no peito, até com lágrimas nos olhos e até com vontade de voltar correndo insana e fazer o que eu queria fazer e não podia querer, talvez e só talvez...

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Ia ser assim

   A maçaneta do meu quarto é preta, meio dourada; assim, com as bordas douradas e no meio um desenho de uma espécie de flor triangular. E o formato em si é como uma florzinha de criança. Cheia de bordas. Dourada em cima e entre as ondulações é preto, escuro, envelhecido pelo toque. A porta está fechada; ela está sempre, sempre fechada, às vezes trancafiada.

   A minha mão esbranquiçada e cheia de veias verdes pulsantes iria escorregar por essa florzinha excêntrica-triangular e abrir-te para o mundo dos meus tetos e das minhas paredes. A flexibilidade toda do chão e da cama, dos livros e da estante escorregadia no piso amarronzado. A vista para os prédios, as duas casas, as outras casinhas e a serra, e as antenas e as luzes que piscam, o manequim ao lado, o cabideiro, o criado-mudo com um abajour cheio de bolas... os móveis todos escuros, pretos, uma parede toda sangrenta, caixas, garrafas, livros, fotografias, lixeira, mundo, mundo, silêncio e chão.

   Entraríamos juntas pela casa. Te puxaria pela mão, te guiando com cuidado pela sala sem “buffet”, porque ele ainda não chegou. Chegaríamos, então, e, rapidamente em um corredor, à direita o quarto do meu irmão, à primeira esquerda o meu banheiro, à segunda direita o meu quarto e à segunda esquerda o quarto dos meus pais e enfim, no final do corredor e na parede um espelho, com moldura de uma madeira não muito escura nem muito clara, com uns desenhozinhos que não sei exatamente o que são, mas me parecem ondas, pequeninas ondas.

   Eu sentaria nessa cadeira aqui, onde estou mesmo. E você, você provavelmente na beira da cama, enquanto espiaria o meu quarto de rabo-de-olho e perceberia o quão é normal, não veria os filmes, nem todos os livros, nem todas as fotografias, e nenhum segredo. Apenas o à mais, que é a televisão, a máquina de escrever, o aparelho de DVD e dois ou três livros que leio simultaneamente, alguns remédios espalhados, canetas, e uma fileira de livros, na última parte da estante.

   Certamente eu me sentiria incomodada com a não reação de sua pessoa ao estar no meu quarto. Levantaria da cama e abriria a primeira porta do guarda-roupa da direita para a esquerda, e escolheria um filme que soaria um qualquer. Ligaria a televisão, colocaria o filme e deitaria na cama.

   Fim. E eu esperaria alguma reação, e não diria nenhuma palavra, aliás, eu disse? Não, ainda não disse.

   O filme começou... e se chama “Lucía y el sexo”. Acendo um cigarro, desses mentolados, porque sei que não tem muito cheiro e sei que você odeia cigarros. Presto atenção no filme. E espero que você preste também. Ainda está aí – ou lá – sentada na beira da minha cama, pertíssimo da televisão e do filme, como quem quer enxergar primeiro o primeiro momento e depois O momento.

   Acabam-se os créditos iniciais do filme, e tudo começa. Tudo mesmo. É muito louca a estória inicial, é confusa, perturbada, ainda me perturba. – Deve perturbar a qualquer um penso isso ainda hoje. E continuamos assistindo; eu prestando mais atenção do que devia e você prestando a devida atenção merecida. Às vezes olho para você, só às vezes. E depois volto a prestar atenção no filme.

   E finalmente, e inesperadamente, e mais rápido do que de costume chegou:

109
00:17:02,890 --> 00:17:05,154
Escute, posso falar com você?

110
00:17:07,027 --> 00:17:09,894
- Agora?
- Daqui a pouco.

111
00:17:11,465 --> 00:17:13,524
Estou com um amigo.

112
00:17:19,606 --> 00:17:21,665
Sobre o que seria?

113
00:17:28,715 --> 00:17:30,148
É o seguinte...

114
00:17:30,517 --> 00:17:32,712
Aconteceu alguma coisa com você?

115
00:17:34,821 --> 00:17:37,449
- Sim.
- Me conte.

116
00:17:40,794 --> 00:17:43,888
- Agora?
- Sim.

117
00:18:02,482 --> 00:18:05,349
- Como você se chama?
- Lucía.

118
00:18:05,986 --> 00:18:09,752
- Eu sou Lorenzo.
- Já sei, eu te conheço.

119
00:18:10,891 --> 00:18:13,121
Eu li seu romance.

120
00:18:13,427 --> 00:18:16,919
Várias vezes. E... agora, não consigo ler mais nada.

121
00:18:18,332 --> 00:18:22,564
Está dentro de mim agora e... não quer sair.

122
00:18:24,004 --> 00:18:29,499
Também te conheço, toda vez que eu te vejo... te sigo.

123
00:18:30,043 --> 00:18:35,106
Gosto de te seguir e saber aonde vai, sem você perceber.

124
00:18:36,149 --> 00:18:39,880
Eu até sei qual é a sua casa.
É aqui ao lado.

125
00:18:41,054 --> 00:18:43,852
E te vejo às vezes dentro deste bar.

126
00:18:44,124 --> 00:18:47,093
- Lembra-se de mim?
- Não.

127
00:18:49,329 --> 00:18:52,958
Eu sou garçonete naquele restaurante.

128
00:18:53,634 --> 00:18:55,727
Você nunca foi lá.

129
00:18:59,006 --> 00:19:01,406
Meu chefe é muito bonito...

130
00:19:01,775 --> 00:19:04,039
e é um bom cozinheiro...

131
00:19:04,911 --> 00:19:08,642
ele me propôs que eu vá viver com ele...

132
00:19:09,316 --> 00:19:12,308
e eu gostei muito disso.
Porque...

133
00:19:12,519 --> 00:19:17,479
sinto que ele precisa de mim, e agora acho que até gosto um pouco dele.

134
00:19:17,691 --> 00:19:19,784
Então...

135
00:19:20,627 --> 00:19:22,686
eu decidi...

136
00:19:26,233 --> 00:19:28,326
O quê?

137
00:19:29,369 --> 00:19:32,304
Quero que você saiba que é você com quem eu quero morar.

138
00:19:32,773 --> 00:19:37,870
Não é porque te ache muito só, mas porque estou apaixonada por você.

139
00:19:38,345 --> 00:19:41,143
Apaixonadissíma, veja você mesmo.

140
00:19:46,553 --> 00:19:49,716
- Você é muito corajosa.
- É mesmo.

141
00:19:50,691 --> 00:19:54,252
E acabou. Eu tentei.

142
00:19:55,696 --> 00:19:57,823
Você gostou?

143
00:20:02,703 --> 00:20:05,570
Você pode ir quando quiser.

144
00:20:48,014 --> 00:20:49,914
Você quer mais alguma coisa de mim?

145
00:20:51,184 --> 00:20:52,879
Sim.

146
00:20:54,154 --> 00:20:57,612
Que, com o tempo e a convivência...

147
00:20:58,425 --> 00:21:01,485
você se apaixone por mim, é claro.

148
00:21:26,686 --> 00:21:29,280
Deixa comigo, Lucía.

149
00:21:35,162 --> 00:21:38,723
Agora vamos ficar bêbados, temos muito para festejar.

   Acabou a cena. Acabou o meu parto e a minha apresentação. Acabou tudo o que eu faria e fiz. Levanto-me, desligo o filme e a televisão, fico de pé mesmo, parada bem perto de tudo...
E então ouso fazer a única pergunta que caberia, se couber nesse momento (porque para mim é tudo tão pequeno, grande, tênue, indescritível, inacreditável, inatingível que nem sei se cabe):
    – Você fica ou quer ir embora agora?