sexta-feira, 21 de março de 2008

Alice morreu

Restrinjo-me ao silêncio seco e agudo. É madrugada, venta, mas não sinto frio. Na rua há uma tênue escuridão amarelada. Os postes e suas luzes amarelas, as casas todas apagadas e suas janelas fechadas... as salas vazias e os quartos, todos cheios. Os passos e às vezes o som da porta que se abre como um soco no estômago vazio.

Terça-feira insone, ao delírio dos antepassados e os desenhos que descolam do teto, todo manchado de sussurros ao triste prolongar. As vozes falam macias, os cabelos deitados no travesseiro e a respiração pausada, sensação maravilhosa, estopim, dize-me exclamações e pequeninos sons para além do mundo; encanto-me com o desconhecido.

Nunca a vi defronte, voz luxuriante. Estado vibracional contra os músculos e o beijo. Deita-te ao meu lado... respira junto, corpo como tábua, tapume, concreto. Estou acompanhada pelo desejo esticado à centímetros do meu próprio desejo-corpo.
Perplexo e complexividade. Engulo tudo, desde a saliva até o leite. Enxergo as sombras sem sombras: como a noite.

Embora haja música, estou sempre com os ouvidos atentos. Hoje, agora está quieto, percebo uma distância entre as paredes, algo que vai além dos séculos, uma mistura de odores e pequenos pesos, amuletos, cobertores e lã.

Passo páginas, encosto em teclas, viro letras, sou imagem enclausurada, captura, instante e silêncio. Não há gatos na rua; acabo de perceber. Não há cães e nem um sinal de coruja. E os pequeninos pássaros ainda demoram, só chegam ao amanhecer.

­ - Céus, que noite estranha. Não ouço ruídos!

Visceral, excêntrico, eu diria, sentimental? Não sei, recolho as cartas, abro as frases, destrincho os fundos dos cofres. E ganho um beijo teu em forma de leve aceno e força de um adeus. Sonho!

Mistura do mundo, da vida... mistura do ser. Seres. Seremos um dia lendários. Imaginários, aspirações paradas em frente a uma janela. Música, canção. Fumaça e espaço.
A noite é tão insuficiente e encantadora hoje que não consigo dormir, rodeio pela cama e os meus pés balançam, sinto medo, sinto tudo e mais um beijo.

- Bom dia, está na hora de acordar, 06:30 da manhã. Não vá perder o horário; “adios”.

Telefono para meu psicanalista logo pela manhã, sinto a essência selvagem, quero palavras, muitas, todas elas... saio e abrindo e trancando os portões. Olho para cima, ninguém: janelas ainda fechadas.

Ligações, resmungos, murmurinhos. Estou na sala de espera, todos estamos. E uma voz me diz algo em que não posso confiar. Corro até em casa, boquiaberta:

- Como foi?
- A empregada tentou acorda-la às 10:00h e nada. Só dormindo. E acredite, desceu agora mesmo, ficou o dia todo aí (agora, 16:34h), ajudei a carrega-la.

- Pela escada ou pelo elevador?


- E ele deu um sorrisinho maroto e disse: elevador.


- Só faltava essa! Estou subindo pela escada. Até mais, obrigada!


A noite, o dia depois da noite. E a minha suspeita. Havia cheiro, havia passos, havia verdade. E era a morte. O pedacinho do céu se abrindo para alguém; um corpo que agora já é qualquer, como o do meu amor, tábua, tapume. A vida que se esvai e a respiração que pausadamente se perde; sem ao menos notar que escapuliu.

Há janela, há o primeiro andar e existe ainda a mocinha que chega e olha para cima. Não há quem retribua, e um dia retribuíram ou quem sabe, retribuirão? O carro todo preto e enorme saindo da porta do meu prédio.
Foram necessários três homens para desce-la de seu apartamento enrolada no cobertor que a cobria enquanto dormia. Ela não coube no caixão. Mas ao menos agora, tudo é imensidão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sublime.