sexta-feira, 25 de abril de 2008

Ia ser assim

   A maçaneta do meu quarto é preta, meio dourada; assim, com as bordas douradas e no meio um desenho de uma espécie de flor triangular. E o formato em si é como uma florzinha de criança. Cheia de bordas. Dourada em cima e entre as ondulações é preto, escuro, envelhecido pelo toque. A porta está fechada; ela está sempre, sempre fechada, às vezes trancafiada.

   A minha mão esbranquiçada e cheia de veias verdes pulsantes iria escorregar por essa florzinha excêntrica-triangular e abrir-te para o mundo dos meus tetos e das minhas paredes. A flexibilidade toda do chão e da cama, dos livros e da estante escorregadia no piso amarronzado. A vista para os prédios, as duas casas, as outras casinhas e a serra, e as antenas e as luzes que piscam, o manequim ao lado, o cabideiro, o criado-mudo com um abajour cheio de bolas... os móveis todos escuros, pretos, uma parede toda sangrenta, caixas, garrafas, livros, fotografias, lixeira, mundo, mundo, silêncio e chão.

   Entraríamos juntas pela casa. Te puxaria pela mão, te guiando com cuidado pela sala sem “buffet”, porque ele ainda não chegou. Chegaríamos, então, e, rapidamente em um corredor, à direita o quarto do meu irmão, à primeira esquerda o meu banheiro, à segunda direita o meu quarto e à segunda esquerda o quarto dos meus pais e enfim, no final do corredor e na parede um espelho, com moldura de uma madeira não muito escura nem muito clara, com uns desenhozinhos que não sei exatamente o que são, mas me parecem ondas, pequeninas ondas.

   Eu sentaria nessa cadeira aqui, onde estou mesmo. E você, você provavelmente na beira da cama, enquanto espiaria o meu quarto de rabo-de-olho e perceberia o quão é normal, não veria os filmes, nem todos os livros, nem todas as fotografias, e nenhum segredo. Apenas o à mais, que é a televisão, a máquina de escrever, o aparelho de DVD e dois ou três livros que leio simultaneamente, alguns remédios espalhados, canetas, e uma fileira de livros, na última parte da estante.

   Certamente eu me sentiria incomodada com a não reação de sua pessoa ao estar no meu quarto. Levantaria da cama e abriria a primeira porta do guarda-roupa da direita para a esquerda, e escolheria um filme que soaria um qualquer. Ligaria a televisão, colocaria o filme e deitaria na cama.

   Fim. E eu esperaria alguma reação, e não diria nenhuma palavra, aliás, eu disse? Não, ainda não disse.

   O filme começou... e se chama “Lucía y el sexo”. Acendo um cigarro, desses mentolados, porque sei que não tem muito cheiro e sei que você odeia cigarros. Presto atenção no filme. E espero que você preste também. Ainda está aí – ou lá – sentada na beira da minha cama, pertíssimo da televisão e do filme, como quem quer enxergar primeiro o primeiro momento e depois O momento.

   Acabam-se os créditos iniciais do filme, e tudo começa. Tudo mesmo. É muito louca a estória inicial, é confusa, perturbada, ainda me perturba. – Deve perturbar a qualquer um penso isso ainda hoje. E continuamos assistindo; eu prestando mais atenção do que devia e você prestando a devida atenção merecida. Às vezes olho para você, só às vezes. E depois volto a prestar atenção no filme.

   E finalmente, e inesperadamente, e mais rápido do que de costume chegou:

109
00:17:02,890 --> 00:17:05,154
Escute, posso falar com você?

110
00:17:07,027 --> 00:17:09,894
- Agora?
- Daqui a pouco.

111
00:17:11,465 --> 00:17:13,524
Estou com um amigo.

112
00:17:19,606 --> 00:17:21,665
Sobre o que seria?

113
00:17:28,715 --> 00:17:30,148
É o seguinte...

114
00:17:30,517 --> 00:17:32,712
Aconteceu alguma coisa com você?

115
00:17:34,821 --> 00:17:37,449
- Sim.
- Me conte.

116
00:17:40,794 --> 00:17:43,888
- Agora?
- Sim.

117
00:18:02,482 --> 00:18:05,349
- Como você se chama?
- Lucía.

118
00:18:05,986 --> 00:18:09,752
- Eu sou Lorenzo.
- Já sei, eu te conheço.

119
00:18:10,891 --> 00:18:13,121
Eu li seu romance.

120
00:18:13,427 --> 00:18:16,919
Várias vezes. E... agora, não consigo ler mais nada.

121
00:18:18,332 --> 00:18:22,564
Está dentro de mim agora e... não quer sair.

122
00:18:24,004 --> 00:18:29,499
Também te conheço, toda vez que eu te vejo... te sigo.

123
00:18:30,043 --> 00:18:35,106
Gosto de te seguir e saber aonde vai, sem você perceber.

124
00:18:36,149 --> 00:18:39,880
Eu até sei qual é a sua casa.
É aqui ao lado.

125
00:18:41,054 --> 00:18:43,852
E te vejo às vezes dentro deste bar.

126
00:18:44,124 --> 00:18:47,093
- Lembra-se de mim?
- Não.

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00:18:49,329 --> 00:18:52,958
Eu sou garçonete naquele restaurante.

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00:18:53,634 --> 00:18:55,727
Você nunca foi lá.

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00:18:59,006 --> 00:19:01,406
Meu chefe é muito bonito...

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00:19:01,775 --> 00:19:04,039
e é um bom cozinheiro...

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00:19:04,911 --> 00:19:08,642
ele me propôs que eu vá viver com ele...

132
00:19:09,316 --> 00:19:12,308
e eu gostei muito disso.
Porque...

133
00:19:12,519 --> 00:19:17,479
sinto que ele precisa de mim, e agora acho que até gosto um pouco dele.

134
00:19:17,691 --> 00:19:19,784
Então...

135
00:19:20,627 --> 00:19:22,686
eu decidi...

136
00:19:26,233 --> 00:19:28,326
O quê?

137
00:19:29,369 --> 00:19:32,304
Quero que você saiba que é você com quem eu quero morar.

138
00:19:32,773 --> 00:19:37,870
Não é porque te ache muito só, mas porque estou apaixonada por você.

139
00:19:38,345 --> 00:19:41,143
Apaixonadissíma, veja você mesmo.

140
00:19:46,553 --> 00:19:49,716
- Você é muito corajosa.
- É mesmo.

141
00:19:50,691 --> 00:19:54,252
E acabou. Eu tentei.

142
00:19:55,696 --> 00:19:57,823
Você gostou?

143
00:20:02,703 --> 00:20:05,570
Você pode ir quando quiser.

144
00:20:48,014 --> 00:20:49,914
Você quer mais alguma coisa de mim?

145
00:20:51,184 --> 00:20:52,879
Sim.

146
00:20:54,154 --> 00:20:57,612
Que, com o tempo e a convivência...

147
00:20:58,425 --> 00:21:01,485
você se apaixone por mim, é claro.

148
00:21:26,686 --> 00:21:29,280
Deixa comigo, Lucía.

149
00:21:35,162 --> 00:21:38,723
Agora vamos ficar bêbados, temos muito para festejar.

   Acabou a cena. Acabou o meu parto e a minha apresentação. Acabou tudo o que eu faria e fiz. Levanto-me, desligo o filme e a televisão, fico de pé mesmo, parada bem perto de tudo...
E então ouso fazer a única pergunta que caberia, se couber nesse momento (porque para mim é tudo tão pequeno, grande, tênue, indescritível, inacreditável, inatingível que nem sei se cabe):
    – Você fica ou quer ir embora agora?

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, Madame Valentina Vallim!

Meden gostaria de ler!!!!!

Bjo,
Urbanóide!